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Uma aldeia de xisto para “provar” Proença-a-Nova

O restaurante Casa Ti Augusta é uma espécie de porta de entrada para uma aldeia onde vivem apenas 16 habitantes

Andreia Marques Pereira

Quando nos vê aproximar, ti Assunção - na verdade, “Maria Ascenção mas todos a chamam assim” - enAEa-se em casa e fecha a porta, no cimo de uma pequena escada, mesmo à face da rua. Não voltará a sair. É Joana Pereira quem nos explica o porquê. “Às vezes, as pessoas exageram, têm comportamentos menos simpáticos. Uma vez, entraram-lhe mesmo em casa, ela AEcou em pânico. A porta estava aberta, como é habitual na aldeia, mas não se percebe? Isto não é um museu.” Estamos em Figueira (Proença-a-Nova), Aldeia de Xisto, com 16 habitantes, “quase todos na casa dos 80 anos” - a casa de ti Assunção está diante da Casa Ti Augusta, restaurante e alojamento local: este, sim, é uma espécie de porta de entrada para aldeia.

É ao AEm-de-semana e nos meses de Verão, sobretudo, que Figueira transborda. Nesta terça-feira da segunda metade de Outubro quase não nos cruzamos com ninguém. Joana é a responsável pelo restaurante Casa Ti Augusta e está a regressar do ginásio, em Proença-a-Nova, que começou a frequentar agora que a AElha, Eva, de 15 meses, começou a ir para o infantário - é a habitante mais nova de Figueira; ti Assunção, 91 anos, a mais velha. Joana tem 41 e vive aqui em permanência desde a pandemia - até então vivia em Lisboa e vinha ao AEm-desemana à aldeia do marido, onde em 2012 abriram o restaurante (aberto a partir do jantar de sextafeira até domingo ou com reservas) e o alojamento (em “suspenso” desde a pandemia). O marido ainda trabalha em Lisboa, onde passa três dias por semana, Joana, que se formou em ciências da educação, apostou “no desenvolvimento local”: do restaurante para a aldeia (e para a região).

“Este não é o restaurante da batata frita e do bitoque”, avisa. É um restaurante que “conta histórias”, as dos pratos servidos, que são também as histórias da aldeia e da região. É um restaurante que serviu “como motor para outros projectos”, que passam sempre pela imersão no território, agora amparados numa empresa que tem o nome de Soul - Speaking Out Loud: “Quero dar voz a quem não a tem.”

“Quando abrimos o restaurante, as pessoas daqui duvidaram, perguntavam-nos o que vínhamos para aqui fazer se só havia pedras velhas”, recorda Joana. “Mas até foi bom para a auto-estima delas”, considera, “agora sentem-se parte da equação, sentem-se úteis quando partilham histórias, receitas e conhecimento.” São estes que vão alimentando os projectos que se vão desenvolvendo ao longo do ano

em Figueira - alguns com pretexto (“já AEzemos Halloween, magusto…”), outros (e cada vez mais, deseja Joana), sem pretexto. Como ateliers e workshops gastronómicos, por exemplo, que incluem visitas pela aldeia.

Pode ser um workshop de tigelada, uma das sobremesas típicas “enquanto está no forno, passeamos pela aldeia”, explica. Que no seu coração até tem um forno comunitário - “cozemos aí pão todas as semanas, fazemos o cabrito…”, conta. Agora, são a única “casa” a usar o forno porque, como ele é muito grande, “nas outras casas já não compensa”, mas o espaço ainda preserva o sistema de marcação de vez de cada casa: uma trave de madeira com 33 furos (os números desenhados a branco) - o processo é explicado na placa de informação aí colocada: “cada família tinha uma peça em madeira e metal, com as suas iniciais, com a qual era marcada a ordem em que iria ser utilizado o forno” (e este chegou a ser acendido dez vezes por dia, lê-se ainda aí).

Dos maranhos ao plangaio

Uma pequena cancela de madeira, a reluzir de nova, dá acesso à parte de Figueira onde o forno se situa veremos outras em vários pontos do casario atravessado por ruelas empedradas, estreitas, indisciplinadas. Eram uma forma de proteger habitantes e animais dos lobos, explicam-nos - todas as noites eram encerrados. Os animais também eram recolhidos e, perto do forno, outra placa de informação chama atenção para as capoeiras, que eram normalmente instaladas em vãos de escadas ou outros nichos pétreos junto às casas: durante o dia, as galinhas andavam em liberdade, guardavam-se.

Caminhamos pela aldeia “original”, digamos, o núcleo de xisto integral, entre casas abandonadas, outras em ruínas mas também muitas restauradas e em obras. Algumas estão “a ser recuperadas pelos AElhos da terra”, entretanto, “também há dois casais estrangeiros”, descreve Joana. Há “uma traça comum” na arquitectura aqui, apontara, não há portões (aliás, as casas estão rentes às ruas) - mas já houve quem se obrigasse a colocar vedações: “Uma senhora um dia chegou e tinha pessoas a fazer um piquenique no alpendre.” Até nas hortas que se intrometem entre o casario alguns colocaram redes: “É normal que as pessoas a passear tirem uma ou outra peça de fruta das árvores, mas, ultimamente, chegam com sacos e caixas para colher”.

Uvas, romãs, dióspiros, a castanha que já começa a aparecer, exibem-se por estes dias. A ti Maria do Rosário vem da sua horta vestida de preto integral, perdeu o marido há dois anos, conta. “Só faço umas coisinhas para mim”, diz-nos, aAEnal, vive sozinha: os netos vivem em Lisboa - “Vou lá só por eles, estou habituada aqui. Gosto de vê-los, mas que venham a mim, que são mais novos.” “Tenho 86 anos, não há muito, mas já estão feitinhos”, conta-nos já na sua sala, que cheira a fumo e ostenta, entre outros um calendário, com uma imagem de

Nossa Senhora - no lugar de destaque, uma televisão.

Ti Maria do Rosário, à porta da sua casa ladeada por uma laranjeira carregada de frutos (por estes dias ainda verdes), gosta de ver gente na aldeia. E Joana acredita que o dinamismo criado pelo restaurante tem ajudado a atrair ainda mais pessoas, numa inversão do que foi o início da Casa Ti Augusta: “As pessoas vinham visitar a aldeia [parte da Rota das Aldeias de Xisto desde 2007] e perguntavam ‘onde podemos comer?’, ‘onde podemos dormir?’”, assume. “Agora, é ao contrário. O facto de sermos um restaurante diferente traz as pessoas até aqui, a palavra passou”, considera, “a parte cultural, do património é o complemento”.

A diferença está, então, nos pratos apresentados. Todos tradicionais, alguns com um toque moderno. Os maranhos (enchidos onde carne de cabra e o arroz reinam, acompanhados por troços de chouriço, tudo temperado abundantemente, com destaque para a hortelã, tudo dentro de bucho de cabra), típicos da Beira Baixa (do Pinhal Interior), o cabrito assado no forno a lenha (também chamado cabrito estonado, explica Joana: é assado com a pele), a salada de almeirão.

E ainda os mais representativos da casa (e os mais pedidos), o afogado da boda, que é parecido com a chanfana, descreve Joana, “mas com cabra adulta em vez de cabra velha, com vinho branco em vez de vinho tinto” e com hortelã, que lhe dá mais “suavidade e tenrura” - era um prato rico e, como o nome indica, bastante popular em casamentos; e o plangaio, talvez o elemento mais distintivo, típico e originário de Proença-a-Nova. “É um enchido de total lógica de reaproveitamento”, explica Joana, “numa zona pobre de serra. Aproveitavam-se os ossos do espinhaço”. Agora, já não há ossos, há entrecosto, para tornar o plangaio mais rico.

Na verdade, aproveitava-se tudo, na matança do porco. “O porco agora é desmanchado de maneira diferente, não se aproveita tanto como quando era em casa”, nota Fátima Verganista, Tita, como é conhecida. Estamos na vizinha Sobreiro Formosa (uma das localidades do concelho onde é mais típico - não à toa tem um Festival do Plangaio) e é do talho Verganista que saem os plangaios servidos na Casa da Ti Augusta. Tita e as suas funcionárias repetem o ritual agora semanal (“saem 60, 70 plangaios por semana”) - antes, os plangaios faziam-se só nesse momento marcante da matança do porco e eram servidos por altura do Carnaval.

“A massa é a mesma da farinheira”, explica Tita, ou seja, “toucinho, colorau, cominhos, alho e farinha de trigo”. A essa massa juntam-se pedaços de entrecosto, temperados com sal e alho em abundância - tudo é amassado, envolvido, e colocado na bexiga do porco. Depois de cheia esta, “o fecho é cosido” - o resultado é uma espécie de bola. Para servir, “tem de ser sempre cozido” - “e era assim que era originalmente servido, como parte dos cozidos”; agora, há quem o leve ao forno, por exemplo, “já aberto, para tostar”. E agora também ganhou estatuto de prato principal, “acompanhado de batatas e hortaliça”.

Ti Maria do Rosário, à porta da sua casa ladeada por uma laranjeira carregada de frutos, gosta de ver gente na aldeia. Tem 86 anos, vive sozinha

Beira Baixa

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2022-10-29T07:00:00.0000000Z

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