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Zhora em Alexandria

Humberto Lopes

Na Rua Sayed Karim há um tribunal. Em certos dias chegam carrinhas celulares com janelas esguias e gradeadas, sinistras como as dos canis. Trazem prisioneiros para os juízes enfastiados decidirem sobre as suas vidas. Um dia, os mirones viram um rosto de mulher com um lenço claro recortado na sombra de uma das janelas. Um rosto fugaz e uns olhos perdidos à procura de alguém que não tinha vindo.

Não saberemos jamais o nome dela, nem o tamanho da ausência que despovoou o passeio triste da Rua Sayed Karim numa tarde de Outubro. Talvez fosse Zhora, a bela egípcia do Delta que Naguib Mafhouz imaginou a trabalhar na Pensão Miramar, a camponesa que de tanto amada e desejada acabou quase sepultada em ódio, sem lugar no devir sonolento da terra dos faraós.

Talvez me tenha cruzado com ela numa aldeia do Delta, ou naquela rua estreita do anacrónico armazém grego. Talvez tenha sido dela o olhar que me apaziguou a irritação quando um polícia me deixou encurralado no forte de Qaytbay, no canto de onde arrancaram a pedra de Roseta, e esticou a mão viciosa para me extorquir um suborno, o baksheesh egípcio.

Sentei-me certa tarde no Café Trianon a pensar em Zhora, a anónima serviçal da Pensão Miramar que não viveu a vida de Justine. A Alexandria dela não foi uma Alexandria de jantares de cerimónia, de literatura e de paixões elegantes. Durrel e Cavafys tê-la-ão visto quando se cruzaram com ela? Mafhouz deu-lhe o destino de milhares que AEzeram por virar o rosto à dureza da vida rural e a trocaram por amores de três vinténs. Já não me lembrava do que me havia feito entrar no Trianon quando me trouxeram uma taça de roz bel laban.

De manhã havia chegado um navio ao porto. Havia trazido Flaubert, que se entristeceu com a cidade. Dar-lhe-ia demasiado trabalho a maçada de reinventá-la, ainda que tivesse dedilhado letras na sua tão iluminada Paris, lido histórias de mil e uma noites e tecido partituras como a de Salambô. Tal como Eça a caminho de Port Said, havia-se preparado artiAEciosamente para respirar outro

Egipto, não o de Justine, Durrell ou Mafhouz. Não o de Cossery e dos seus patifes heróis. Previdentes, trouxeram com eles um pouco do Egipto de que precisavam.

Nessa tarde, pouco antes do crepúsculo tomei um eléctrico. A cidade estava vazia, como se toda a gente tivesse fugido. Foi junto ao forte Qatbay. Havia uma luz bruxuleando ao fundo, no meio do nevoeiro. Pensei que podia ser do farol. Há blogues delirantes e conselheiros de viagens alucinados que o anunciam como visita turística dois mil anos depois, tão fora do tempo e solene como os antepassados dos incunábulos que romanos e outros mandaram queimar na grande biblioteca. O farol de Alexandria: lembro-me de o ter visto, brand new, na capa de um Reader’s Digest há séculos, muita gente não tinha ainda nascido.

O eléctrico era antigo, de dentro dele víamos o mundo emoldurado em madeira. Fazia uma chiadeira nobre. Passámos a assobiar pergaminhos por uma rua de pescadores e logo depois pela Mesquita Abu al-Abbas al-Mursi e pela coluna de Pompeu, não me lembro se por esta ordem. Vi a coluna Çutuar através do gradeamento como uma bandeira. Outro passageiro seguia dentro do eléctrico. Era uma mulher de véu preto, apenas os olhos cintilavam na penumbra. Podia ser Zhora, podia ser a camponesa do Nilo, de olhos negros como os das escravas núbias ou como as azeitonas do oásis de Siwa.

O veículo estremecia ao longo dos carris da marginal e numa praça começou a andar como num carrossel à volta de um sultão de pedra. Zhora desceu de súbito numa paragem e desapareceu entre palmeiras negras. Já estava escuro como breu, era muito tarde, Alexandria já tinha recolhido a casa. Não era a rua da Pensão Miramar. Iluminado pela luz moribunda de um candeeiro, Mafhouz fumava um cachimbo de água à entrada do Hotel Cecil, na praça onde na véspera eu tinha apanhado um transporte para o

Delta e AEngia não ser ele. Havia um rádio a tocar música, o som esvaía-se, abafado, de uma janela fechada.

No instante seguinte todos esses detalhes tornaram-se tão precisos como farrapos de neblina. Vi tudo de muito longe, de anos-luz de distância. Vi a escuridão incendiar-se como uma manhã de Verão no deserto. Vi Alexandria iluminar-se de uma luz excessiva como a de um deus irado numa caverna do tamanho do mundo. Deus, isto foi há tanto tempo!

Fiz um esforço para me libertar da modorra. Cavafys, Durrel, Mafhouz, Cossery, o próprio Alexandre, nada podiam contra a bela camponesa do Nilo. Nesta fantasia alexandrina, Zhora havia-se transformado em chinesa, os olhos refeitos em linhas oblíquas, curvos como a baía, e negociava o táxi para nos levar para o aeroporto. “Vivo no Cairo há mil anos, conheço bem os riquexós egípcios. Deixa-me falar com eles.” Fiquei nas mãos dela como Pessanha nos braços do ópio.

Vi tudo de anos-luz de distância. Vi Alexandria iluminar-se de uma luz excessiva como a de um deus irado numa caverna do tamanho do mundo

Memória De Viajante

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2022-08-06T07:00:00.0000000Z

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