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Quem sustenta quem no Douro? Depende do prisma, caro David

Pedro Garcias Jornalista e produtor de vinho no Douro

A propósito dos 50 anos do

Porto Fonseca BIN 27 e a partir de uma conversa com David Guimaraens, AElho de um dos criadores do vinho e actual enólogo-chefe da empresa, leio isto no site Terroir, da Fugas: “Os especialistas e críticos podem não lhe dedicar muitas linhas mas é um grande vinho que toda a gente pode beber e para a Fonseca é uma espécie de cartão-de-visita. Mais: é o sustento de muitas famílias do Douro, a quem a marca estabelecida em 1815 compra uvas para fazer este vinho das categorias superiores.”

No mesmo texto, o próprio David reforça: “O Bin 27 é muito importante para a sustentabilidade [económica] dos viticultores com quem a empresa trabalha no Douro”. (…)” Quando se fala do vinho do Porto, há que saber dar valor [também] aos comerciantes que ao longo da sua história

AEzeram com que fosse conhecido”.

Eu poderia ter escrito mais ou menos o mesmo, mas ao contrário: as uvas que muitas famílias vendem à Fonseca são o sustento desta empresa, caro David! Por que razão o viticultor do Douro aparece sempre como o beneAEciário da actividade das grandes empresas no negócio do vinho do Porto? São elas, por acaso, organizações altruístas, sem AEns lucrativos? Será que empresas como a Fonseca devolvem aos viticultores do Douro parte dos lucros que obtêm graças às uvas que estes lhes vendem?

Esta visão unívoca (e muito liberal) do negócio do vinho do Porto até seria aceitável se ela assentasse numa relação comercial justa. Mas não é isso que acontece. A Fonseca até é das empresas que melhor paga as uvas para vinho do Porto e o seu papel no desenvolvimento do vinho do

Porto e da região é inquestionável. Mas, mesmo pagando acima do grosso dos operadores, a Fonseca e todas as grandes empresas pagam mal. No início deste milénio, e no ano anterior, a pipa de vinho do Porto foi vendida a 240 contos (1200 euros). Aplicando o coeAEciente de desvalorização da moeda que a Autoridade Tributária utiliza para o apuramento das mais-valias (1,42 para as transacções feitas no ano 2000), os 1200 euros pagos no início deste milénio equivalem hoje a 1704 euros. Acontece que na última vindima o preço por pipa de vinho do Porto para as melhores vinhas não chegou sequer aos 1200 euros. Ou seja, em 22 anos, os viticultores do Douro perderam mais de 504 euros por pipa. Na verdade, o prejuízo foi muito maior, porque, no mesmo período, os custos de produção subiram exponencialmente.

David Guimaraens costuma contra-argumentar com o preço das uvas para DOC Douro, que são pagas ainda pior: a menos de metade do valor das uvas para vinho do Porto. É verdade.

Além de não receberem o preço justo pelas uvas para vinho do Porto, os viticultores do Douro ainda vendem as uvas para DOC Douro abaixo do custo de produção. Mas uma desgraça não pode justiAEcar a outra.

Compreende-se que David Guimaraens diga que os viticultores do Douro deviam era reclamar dos preços das uvas para DOC Douro (a Fonseca e as outras empresas do grupo Fladgate Partnership não produzem vinho DOC Douro). Mas isso não pode iludir a crescente perda de rendimento dos viticultores durienses com a venda de uvas para vinho do Porto, que continua a ser a base do rendimento da região.

Ao contrário do vinho DOC Douro, em que a oferta excede largamente a procura, o vinho do Porto tem uma regulação que lhe permite adequar as compras às expectativas de vendas. Se num ano há excedentes, no ano seguinte produz-se menos e os stocks AEcam novamente equilibrados. Por outro lado, o vinho do Porto possui inúmeras referências que permitem ganhos bastante diferenciados. Um Porto Vintage, por exemplo, dá às empresas uma margem de lucro muito superior à de um Tawny Reserva, por exemplo.

Acontece que na hora de pagar as uvas aos viticultores essa diferenciação, de uma forma geral, não é tida em conta. E, por causa disso, numa perversão total do sistema, há cada vez mais viticultores que entregam as suas piores uvas para vinho do Porto, vendendo as melhores para DOC Douro, procurando, dessa forma, atenuar as perdas.

O Douro é mesmo um caso de estudo. Não há outra região do mundo que se lhe compare em beleza, produz vinhos de elevada qualidade e cheios de história e o seu potencial como destino turístico é enorme. No entanto, a região está a esvaziar-se de gente, a mão-de-obra é cada vez mais escassa e o rendimento dos viticultores não tem parado de degradar-se.

Atribuir a culpa apenas às grandes empresas seria desonesto. São elas quem assegura e desenvolve o negócio. Mas, se insisto na sua responsabilização, é porque só com o seu envolvimento será possível inverter a situação ou torná-la um pouco mais justa. Morta a Casa do Douro, os produtores deixaram de ter uma estrutura representativa forte, pelo que a mudança está, mais do que nunca, nas mãos do comércio, em especial nas cinco grandes companhias do sector: Sogrape, Symington, Fladgate Parnership, Sogevinus e Gran Cruz.

Pagar mal, porque a oferta excede a procura, pode trazer benefícios a curto prazo. Mas, a médio e longo prazo, é uma estratégia suicida, porque se acaba por entrar num ciclo de uvas baratas e de vinhos baratas. É preciso coragem para dar o passo que se impõe: subir o preço das uvas para ir subindo o preço dos vinhos. As grandes empresas podem começar por dar esse passo nas uvas para vinho do Porto, porque dominam o negócio (nos vinhos DOC Douro, a prioridade devia ser adequar a produção à procura, destilando os excedentes ou reduzindo administrativamente a produção por hectare). Só assim, pagando um preço justo aos viticultores durienses, é que se pode sonhar com uma região sustentável e dizer que vinhos como o Fonseca BIN 27 - uma das minhas primeiras paixões no vinho do Porto - são o sustento de muitas famílias do Douro.

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2022-08-06T07:00:00.0000000Z

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