Público Edição Digital

Um saboroso pingue-pongue entre Portugal e Japão

Edgardo Pacheco

Eis um espaço onde peixes, mariscos e vegetais são tratados com técnicas portuguesas e japonesas. E bem tratados

● Uma amiga de Setúbal convidou-nos para um almoço e mandou a morada do restaurante por SMS. Nós chegamos ao destino sem “googlar” nada. Tanto podia ser mais um tasco de choco frito como um restaurante da Mongólia. E foi só quando espreitamos a ementa do Ryori que demos conta de que íamos participar num pingue-pongue entre o Japão e Portugal. Se conhecíamos o chef Renato Velez? Não. Mas, uma semana depois, estávamos de novo sentados no Ryori, para conAErmar certas coisas e dar a volta à carta.

Por decisão de quem nos convidou, a selecção de pratos AEcou nas mãos do chef e lá se começou a meter a conversa em dia. Chegou o couvert, veio um primeiro prato, que provocou silêncio, veio um segundo prato (outro silêncio) e quando nos meteram o terceiro à frente tivemos de interromper o diálogo para, bem à tuga, perguntar: “Quem é este gajo que está para aqui a servir uma espécie de menu kaiseki?” Resposta alegre do outro lado da mesa: “Ah, desculpa, esqueci-me de te dizer que o Renato trabalhou com o Tomo, cá e no Japão.” Estão os leitores a ver aquele mau estar provocado pela vergonha? Pois foi o que nos aconteceu. Renato Velez é um dos discípulos dessa sumidade que é Tomoaki Kanazawa, trabalhou com ele no Tomo (Algés) e num hotel perdido numa montanha japonesa. Nós não sabíamos disso.

Renato licenciou-se em Relações

Internacionais e trabalhou na indústria automóvel. Um dia chateou-se, fez um mestrado de artes culinárias na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril e outro curso de gastronomia japonesa, com Paulo Morais. Esteve três anos com o Tomo, abriu o Sushilogia em Setúbal, fechou-o uns anos depois e foi para o Japão. Quando regressou esteve nas cozinhas do Loco, do Feitoria e do Prado. Em Outubro de 2019 abriu o Ryori. “O Tomo é muito exigente, mas depois reconhece o trabalho dos outros. De início, em Algés, ele não me deixava tocar em nada, só queria que visse como ele trabalhava, mas com as minhas mãos atrás das costas. Quando entendeu que era altura de me pôr à prova pediu-me para arranjar um carapau. Fiz o trabalho e, no AEm, diz-me ele: ‘Não percebes nada de peixe’”.

No Ryori o couvert é preparado com uma pasta de peixe delicada, broa, umas telhas de chouriço e manteiga noisette (7€). Depois, em matéria de aperitivos podemos passar para caldos de peixe, gyosas, tiborna de bacalhau ou bao de novilho e couve kale tostada, mas o nosso desejo vai todo para uns tacos crocantes recheados com gamba branca e abacate (14€), temperados com um molho ligeiramente picante, gengibre e folhas de agrião. Trata-se de uma sandes estaladiça e suculenta, com sabor intenso e viciante. Com um conceito destes abríamos um quiosque nocturno de tacos na Avenida 24 de Julho, em Lisboa, e tínhamos a vida feita.

Como pratos principais temos, por exemplo, o gaspacho com gambas da costa e sorbet de pepino (13€). Prato fresquíssimo, sendo que o carácter asiático vem do caldo de base do gaspacho, feito com um dashi delicado (alga de kombu e Çocos secos de peixe). Seguem-se uns mexilhões assentes numa base que é preparada com a água de abertura dos bivalves, mirin e saquê, e que será espevitado com yuzu, lima, limão (12€). Na mesa junta-se um óleo de endro. É uma criação curiosa pela ligação de sabores que nos remetem para cá, para o Japão e para países escandinavos.

Chega agora uma vieira, que é coisa que nos provocou um certo enjoo nos últimos anos, mas que aqui ganha vida por causa de uma base que é, se assim podemos dizer, feita com um leite de tigre japonês.

Isso e mais uns preparados com rabanete, pepino, abacate e vinagre envelhecido. A vieira curada assenta nesta base e, por cima, ovas (15€).

Num domínio mais clássico, provou-se um combinado de sushi e sashimi (25€ para duas pessoas), com as peças de peixes nobres num corte perfeito e o arroz como o Tomo gosta: a 36 ou 37 graus, que é a temperatura da nossa pele.

Para terminar este capítulo, chocos e tzatziki (14€), que é o molho grego feito com iogurte e pepino e, neste caso, vinagre de mirtilo que vem de Trás-os-Montes. Com a tinta e as cabeças dos pequenos chocos e ainda molho ponzu e alcaparras secas o chef – que conta na cozinha com a ajuda do jovem cozinheiro Nicu Lastremeschii – cria um prato

Ryori

Praça Marquês de Pombal, 2 A Setúbal

Tel.: 933 242 833

Horário de Verão: segunda e terça – só jantares; de quarta a sábado, almoços e jantares. Fecha ao domingo. delicado e de grande beleza. Pela conjugação de sabor e estética, foi dos pratos mais surpreendentes que provámos nos últimos meses.

Talvez porque nunca nos saia da cabeça o AElme Uma Pastelaria em Tóquio, pedimos, para sobremesa, uma compota de feijão azuki e mochi (confeitos glutinosos da tradição nipónica) de yuzu e de chocolate (7€). Isso e um merengue yuzu de gengibre (7€). Como é de lei, tudo delicado e sem excessos de açúcar ou ovos.

Sabemos que com um menu kaiseki não se brinca. É algo muito trabalhado, estudado e planeado em função da sazonalidade, mas duas refeições no Ryori encaminharam a nossa memória para esse universo. Só se chega a este patamar com trabalho e paixão, que se percebe nos detalhes de cada prato, de cada preparação ou de cada combinação. De onde vem tal paixão? “Talvez da minha mãe, que era cozinheira e eu desde pequeno andei com ela na cozinha. Eu adorava tanto comer e ver a comida a ser feita que quando a minha mãe se preparava para lavar os tachos eu dizia-lhe para não o fazer porque queria perceber como é que o sabor se tinha alterado com a passagem do tempo”. Ideias destas explicam muita coisa.

Ryori

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2022-08-06T07:00:00.0000000Z

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