Público Edição Digital

Trocou umas passas com Galamba, mas não inalou a conversa

João Miguel Tavares Jornalista

Bill Clinton deixou para a posteridade duas intervenções memoráveis na arte de torturar a linguagem em proveito próprio. A primeira foi a 29 de Março de 1992, durante a corrida para a presidência dos Estados Unidos. Ele já antes fora questionado acerca do consumo de drogas na juventude e respondera que nunca na vida violara qualquer lei estatal ou federal. Mas nesse dia um jornalista esperto perguntou-lhe: “E violou a lei de outro país?” Aí, Clinton admitiu que, 20 anos antes, em Inglaterra, tinha fumado marijuana “a time or two”. Acrescentou: “Não gostei. Não inalei. E nunca mais experimentei.” A frase “fumei, mas não inalei” tornou-se, a partir daí, um clássico da sonsice em política.

O mesmo Bill Clinton, a 28 de Janeiro de 1998, acossado pelo escândalo Monica Lewinski, garantiu ao povo americano: “Quero que todos me ouçam. Eu não tive relações sexuais com essa mulher.” O problema é que meses depois apareceu o famoso vestido azul com uma nódoa comprometedora, que o procurador Ken Starr demonstrou corresponder ao DNA do Presidente americano, acusando-o de perjúrio. A partir daí, a fascinante argumentação passou a ser outra: será que o sexo oral integra obrigatoriamente a categoria de “relação sexual”? Bill Clinton e a sua equipa de advogados defenderam que não. Praticar sexo oral (activamente) era uma relação sexual; receber sexo oral (passivamente), como alegavam ter sido o caso, não era. Foi o segundo clássico clintoniano a entrar para os livros de História: “Sexo oral não é sexo.”

E ainda há quem diga que a política é um tema aborrecido.

Em Portugal, não temos este tipo de excitação, mas, à falta de melhor, temos a TAP. À sua medida, é um excelente exemplo de manipulação do discurso, de elasticidade dos jogos de linguagem e de como palavras pretensamente clarificadoras podem ser utilizadas para ocultar a realidade. Falar não é informar. Conversar não é sugerir. Reportar não é orientar. Ou seja, sexo oral não é sexo.

Digamos que o secretário de Estado Adjunto Mendonça Mendes trocou umas passas de informação com João Galamba a 26 de Abril, mas não inalou a conversa. É provável que por esta altura a maior parte dos portugueses esteja a atravessar as mesmas dificuldades. Se para os jornalistas já é complicado acompanhar as múltiplas versões acerca dos telefonemas que Galamba fez na malfadada noite, imaginem um pobre cidadão que só veja o telejornal das oito, completamente perdido na maresia das explicações desfasadas.

Um breve resumo. A 29 de Abril, João Galamba disse que ligou “ao secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro”, que o aconselhou a “falar com o Ministério da Justiça”, que sugeriu “comunicar” os factos ao SIS e à PJ. A 18 de Maio, Galamba disse que foi “o gabinete do primeiro-ministro” que lhe sugeriu ligar ao SIS, em concreto ao secretário de Estado Adjunto António Mendonça Mendes. No dia 6 de Junho, Mendonça Mendes disse que “o reporte” ao SIS “não decorreu” de qualquer “sugestão” sua. Mas reparem na subtileza: ele não disse que não tinha dito para reportar ao SIS. Disse que o reporte ao SIS (supostamente feito pela chefe de gabinete de Galamba) não foi uma consequência da sua sugestão. Bravo.

Quando lhe falaram em contradições, respondeu: “Não gosto muito de adjectivar”, nem do “uso” que costuma ser dado às palavras “verdade” e “mentira”. Bravo a dobrar. A telenovela do computador tem sido péssima ao nível da ética — mas magnífica ao nível da linguística.

A telenovela do computador tem sido péssima ao nível da ética — mas magnífica ao nível da linguística

jmtavares@outlook.com publico.pt/assinaturas

Público

pt-pt

2023-06-08T07:00:00.0000000Z

2023-06-08T07:00:00.0000000Z

https://ereader.publico.pt/article/282218015186812

Publico