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Opinião

Sara Figueiredo Costa Jornalista e crítica literária

Publicado em 1981, Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado, é uma história sobre o tempo e a sua ilusão, mas também sobre a memória, o crescimento e os modos mais ou menos atribulados que vamos encontrando para aprendermos a situar-nos no mundo.

Andamos há milénios a inventar maneiras de sequestrar o tempo. Entre calendários, relógios e outros expedientes que nos prometem a ilusão de alguma ordem nos dias, vamos medindo, marcando, fingindo antecipar o que é necessariamente imprevisível. Quando os teóricos da física quântica anunciaram que o tempo, afinal, talvez não exista, já a literatura conhecia a revelação há muito. Ou desde sempre, que o digam os versos de Homero ou de quem lhe deu o nome, e talvez tenha sido a própria literatura a revelá-lo. Se somos a única espécie que conta histórias, característica que realmente nos separa dos outros animais, é porque sabemos que esses compartimentos temporais servem apenas a arrumação linear cronológica; no mais, somos e seremos muitos tempos convivendo num embuste chamado presente.

A protagonista de Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado, é fruto dessa constatação sobre a ilusão do tempo. No momento em que encontra uma fotografia da sua bisavó Beatriz quando era pequena, tudo é estranheza para Isabel. As roupas, o cabelo com cachos e os brinquedos que exibia para a objectiva faziam com que aquela criança parecesse, aos olhos da bisneta que nunca conheceu, uma boneca. É quando a mãe lhe explica quem é a criança do retrato que Bisa Bia nasce para Isabel. E, nesse momento, passa a fazer parte da vida da sua bisneta, não apenas como uma memória que é apropriada por quem realmente não a tem, mas também como presença que se busca num tempo e se traz para outro.

As fotografias dos familiares que nunca conhecemos têm essa aura de estranheza familiar. Reconhecemos ali alguma coisa que também é nossa, uma pertença, e atribuímos à imagem o reconhecimento de algo que nos integra. O que reconhecemos, no entanto, deve-se mais às histórias que nos foram contando do que a qualquer poder mágico dos sais de prata. No seu clássico sobre a fotografia, Roland Barthes fala do “regresso do morto”, não numa perspectiva tétrica ou de incapacidade de aceitar que a morte afasta os outros de nós (e fará o mesmo por nós, um dia destes), mas antes numa lógica de convívio anacrónico. Olhar a fotografia de um antepassado de quem não fomos contemporâneos coloca-nos nesse tempo, mas também o antepassado se desloca, de algum modo, até nós. Tudo sem que nem ele ou ela, nem nós, nos movamos do sítio. Bisa Bia, Bisa Bel parte dessa possibilidade, afastando o potencial fantasioso das viagens no tempo e assumindo uma ideia de cronologia que não se inscreve no calendário. Somos o que vivemos, mas também aquilo que os que por cá andaram antes nos deixaram, mesmo sem saber, mesmo sem vontade testamentária expressa. O regresso do morto, então, não é bem um regresso, é uma confirmação da presença de alguém que há muito desapareceu, e isso acontece pela palavra que se vai transmitindo, mais do que pela imagem. A própria protagonista tem noção de quão difícil de explicar é esta confirmação, por isso mantém a existência de Bisa Bia em segredo: “Como é que eu podia explicar a ela que Bisa Bia estava existindo agora para mim?”

Esse segredo será mantido até certo ponto. Isabel não partilha com os outros o facto de Bisa Bia ser, agora, uma sua companheira, com quem fala e de quem discorda tantas vezes, descobrindo o choque geracional e a impossibilidade de chegar a acordo sobre como o mundo deve ser. Por exemplo, para Bisa Bia, os rapazes devem cortejar as raparigas de forma cavalheiresca e estas devem comportar-se com recato; para Isabel, tudo isso é sem sentido, subir às árvores e apanhar goiabas é um direito universal e a ideia do namoro passa pela igualdade de circunstâncias e pela liberdade de escolha. Ainda assim, bisavó e bisneta entendem-se, porque o convívio de Isabel com a presença fantasmática, ainda que benévola, de Bisa Bia é também o seu processo de crescimento, o tempo em que aprende sobre como eram o mundo e as práticas sociais de quem o habitava e recusa, no presente, aquilo que não faz sentido preservar. Esse gesto firme de recusa não apaga o reconhecimento dos que andaram lá, por esse país estrangeiro que é o passado, mas assume que os rumos que se vão traçando são da responsabilidade de quem tem agora os pés pousados sobre a terra.

Autora de uma longa lista de livros, nem todos passíveis de arrumar nesta prateleira pouco fiável a que chamamos “infantil”, Ana Maria Machado tem em Bisa Bia, Bisa Bel uma extraordinária reflexão sobre o lugar que ocupamos no mundo, uma existência pendular entre a absoluta insignificância e a relevância que podemos assumir nas vidas de quem connosco se cruza, ou de quem terá, um dia, notícia da nossa existência fugaz. A ideia de linhagem é aqui sublimada sem elogios genéticos ou exaltações sociais. Quando Isabel descobre que também ela, no futuro, será bisavó de alguém, não está a forçar essa predestinação que a sociedade impôs às mulheres, como se todas tivessem de ter filhos e dar continuidade à espécie, mas antes a pensar-se a si mesma no tempo, assumindo uma escolha, aprendendo a decifrar-se num futuro que ainda é desconhecido, mas onde ela própria será também passado. Nesse sentido, a descrição da discussão entre Bisa Bia, Isabel e a futura bisneta desta é uma bela metáfora para esse turbilhão a que chamamos crescimento e uma abordagem desassombrada ao tema da morte, que não deve nada à pedagogia exclusivamente apostada na superação da dor.

Originalmente publicado em 1981, e logo distinguido com o primeiro de vários prémios que haveriam de celebrar a obra de Ana Maria Machado, no Brasil e no mundo, Bisa Bia, Bisa Bel já teve diferentes ilustrações, conforme as edições. Nesta Colecção Pererê, da Tinta-da-china em parceria com o PÚBLICO, a tarefa coube a João Fazenda, que a cumpriu com o habitual rasgo certeiro que o seu traço sempre alcança para cada texto com que dialoga. Contrastando elementos preenchidos por cores fortes com outros que surgem numa espécie de sépia, sem contornos definidos, as imagens de Fazenda são exemplares no que toca ao encontrar de um equilíbrio entre a descrição de uma infância animada e presente, a de Isabel, e os ecos de outros tempos que a vão atravessando, sempre contribuindo para encorpar com mais camadas e sentidos essa existência que parece apenas feliz e infantil.

Que esta contemplação sobre o tempo e o modo como nos construímos se vá estruturando numa narrativa clara, notoriamente pensada para leitores de tenra idade, não retira profundidade à reflexão. Não é que as coisas complexas se percebam melhor quando as simplificamos, mas é bem possível que a elaboração exacerbada seja um caminho mais rápido para o abismo do que para a consciência de nós e do mundo. Neste livro, não há simplificações didácticas nem explicações fechadas para aquilo que sempre foi difícil de compreender, mas há uma vontade de ir ao fundo das coisas e, simultaneamente, apreendê-las nos modos como se expressam em nós. É bem capaz de ser por isso que contamos histórias.

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2023-06-08T07:00:00.0000000Z

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