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Um mundo onde a baleia desapareceu não é bom sinal

Azul aborda um futuro com os oceanos em colapso e apresenta-se como a primeira série nacional protagonizada por uma actriz com trissomia 21

Rui Pedro Paiva

Vila Franca do Campo, Açores. O dia discorre negro. As embarcações estão paradas no porto, sob o olhar atento dos pescadores que estão em terra. Em frente, o mar vasto e cinzento, comprimido pelas nuvens que turvam a visão do ilhéu da vila, um dos postais turísticos do arquipélago.

Ao lado, a marina. Entre os barcos atracados está o navio que acolhe as filmagens da Azul, série de seis episódios que se vai estrear em 2024 na Opto, plataforma de streaming da SIC, produzida pela Blanche Filmes, com a SIC Esperança e a associação Terra Amarela. A ideia para o dia seria gravar em alto-mar, mas a imprevisibilidade climática dos Açores obrigou a mudança de planos. Barcos em terra, tempestade no mar.

“Ainda bem que hoje é em terra. Ontem, em 30 pessoas, só cinco é que não enjoaram”, brinca um dos membros da produção, aludindo à viagem de 16 horas de barco que a equipa realizara na véspera. No interior, o ambiente do navio começa a revelar a história: ferramentas de investigação, cartazes sobre cetáceos, cartas das ilhas açorianas.

“Fazemos um retrato daquilo que poderá ser o nosso mundo daqui a 20 ou 30 anos se continuarmos por este caminho. Quando se fala em alteração climática, é sempre a água do mar que motiva todas as alterações. Está tudo ligado ao mar”, contextualiza ao PÚBLICO o realizador Pedro Varela, criador das séries Os Filhos do Rock (2013), A Filha da Lei (2017) e Esperança (2020).

“Comecei a projectar uma história que se passa no futuro relacionada com o ambiente e as baleias. Uma representação quase metafórica de que se as baleias saírem dos oceanos, nós morremos, porque elas são a sustentabilidade de tudo”, explica o realizador. O alerta ambiental é uma das “causas” da série, a outra é a inclusão — mas já lá vamos.

“Silêncio no barco!”, ouve-se. É tempo de rodar. Em cena, Ricardo Pereira e Mariana Duarte. “Acção!”. A chuva começa a cair mais intensamente e há um gotejar particularmente audível que se destaca ao embater no casco próximo da cena. “Há aqui um ping-ping-ping”, interrompe o realizador, ensaiando uma onomatopeia. “Manda parar a chuva...”, retorque Ricardo Pereira, ironizando. “Temos de desviar o som”, prossegue Varela. Rapidamente, a equipa sobe ao painel superior, desdobrando-se em várias frentes na inspecção ao barco na busca pelo local exacto. Escutam de um lado, ouvem do outro. Descobrem o sítio. Lá de baixo, carregam-se toalhas para abafar o badalo da chuva. Testa-se o som para ver se aquela gota em particular foi eliminada. A equipa aguarda, expectante. “Está resolvido!”, sentencia Varela, motivando festejos entre os membros da produção. “Parámos a chuva.” Pelo menos, a que importava.

As “causas”

Num planeta em decadência, a última baleia foi vista há um ano, mas eis senão quando um espécime foi descoberto, morto, numa praia dos Açores. “Se a baleia desaparecer, a vida como a conhecemos acaba. Imaginamos um mundo onde tudo isso já é real”, afirma o realizador, explicando que a acção acontece num “futuro próximo”.

A trabalhar com a produção está Nuno Sá, fotógrafo e realizador subaquático, autor do documentário Ilha dos Gigantes (2022), sobre os tubarões-baleias de Santa Maria. Veio dar a “experiência do terreno”, colaborando com a parte subaquática. “Não vão existir grandes belezas subaquáticas”, adverte, até porque no tempo da série os “oceanos foram delapidados e entraram em colapso”. “Esperemos que seja um cenário catastrófico que não se venha a concretizar, apesar de ser o caminho pelo qual estamos a seguir. Muitas cenas são de

A “beleza da série”, para o fotógrafo e realizador subaquático Nuno Sá, é ser um “grande alerta”

oceanos vazios e do som a conseguir propagar-se.”

A “beleza da série”, para Nuno Sá, é ser um “grande alerta para o caminho que estamos a tomar”. É um aviso sobre as consequências da poluição, do tráfego marítimo e das alterações climáticas. A baleia enquanto símbolo de uma humanidade norteada pelo egoísmo e que caminha indiferente. “Comecei a perceber que os meus filmes ao longo dos anos começaram a ter muitas causas. É a única oportunidade que eu tenho de juntar as coisas de que mais gosto”, reconhece Pedro Varela.

Se uma das causas é a ambiental, a outra é a inclusão. A Azul apresentase como primeira série portuguesa a ter como protagonista uma actriz com trissomia 21, Leonor Belo. Um repto que foi lançado a Pedro Varela por Marco Paiva, actor que também entra na série e responsável pela Terra Amarela, plataforma de criação artística inclusiva.

“Aceitei o desafio na hora”, diz o autor de Azul, fazendo questão de realçar a importância do papel interpretado por Leonor Belo. Trata-se de Olívia, uma jovem de 18 anos, filha de um biólogo famoso, que se junta a um grupo de activistas nos Açores, obstinados a desvendar o desaparecimento das baleias. “Ela puxa a história. Tem diálogos intensos, a câmara está nela muito tempo. Isso é uma grande novidade. Nunca foi feito”. O criador já tinha trabalhado com outros actores portadores de deficiência, mas “reconhece que esta é a experiência mais a fundo”. Uma aprendizagem. “A nossa Olívia tem uma capacidade para nos colocar no modo sensorial e de travar o tempo.”

O elenco conta ainda com o actor surdo Tony Weaver, cuja personagem vai assumir um “trabalho de máxima responsabilidade” como controlador marítimo, comunicando por língua gestual com a capitã do porto. Sim, uma capitã. “A capitã do porto é uma mulher. Não existe uma única mulher capitã do porto em Portugal. O Tony é o controlador da capitania. Ele não ouve, mas tem olhos, vê e comunica. Ele e a capitã comunicam por linguagem gestual.”

Dos Açores à Islândia

Em Vila Franca do Campo, a chuva não dá tréguas. Desta vez, o clima açoriano está a ser bastante previsível. Olha-se lá para fora e o cais encharcado está envolto em nevoeiro. Para a gravação de cenas no exterior, a equipa desdobra-se para proteger os equipamentos, o realizador tenta filmar abrigado por guarda-chuvas e os assistentes esforçam-se para conter o impacto da água.

“Este lado climático dos Açores é bestial. Nunca sabemos o que esperar. A chuva, as paisagens, os trilhos. Está a ser uma experiência muito bonita e muito grande profissional

mente”, adianta Ricardo Pereira, que desempenha o papel de um biólogo marinho que ganhou fama ao conseguir comunicar com as baleias e ao inventar um processo para uso da televisão debaixo de água.

As rodagens, que já passaram pelo Faial, Pico e São Jorge — assumindo uma dimensão regional incomum nos Açores —, vão terminar depois de amanhã, no Dia de Portugal. Pelo meio, vão à Islândia, onde ainda se caçam baleias, por oposição ao arquipélago açoriano onde o último cachalote foi morto em 1987. A partir daí a forte tradição baleeira da região foi redireccionada para a observação. “A imponência terrestre dos Açores também tem a ver com a imponência da baleia, um animal tão grande, um símbolo que faz parte do dia-a-dia destas ilhas”, descreve o actor.

A chuva não dá descanso e as rodagens voltam para o interior do navio. Leonor Belo vai contracenar com Romeu Costa e Anabela Moreira. O realizador vai ter com “Nônô”, como é chamada por toda a equipa, e fala com ela sobre cada momento da cena. Fazem exercícios de dicção e exercitam os músculos da boca. No final, Pedro Varela pede um sorriso à actriz. Pedido correspondido. “Nós temos é de sorrir”, solta o realizador, já de volta ao local de onde vai filmar. “Silêncio no barco. Acção!”. Agora já não se ouve o ping-ping-ping da chuva.

Cultura Nas Filmagens De Azul, Na Opto/sic Em 2024

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2023-06-08T07:00:00.0000000Z

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