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Ocidente em minoria ou reforma da governação global?

Maria João Rodrigues

Os sinais de crise do sistema de governação global criado no pós-Segunda Guerra Mundial multiplicam-se. A Europa tem uma escolha.

No continente europeu, a invasão dum país soberano como a Ucrânia em violação flagrante da Carta das Nações Unidas não consegue obter condenação por parte do seu Conselho de Segurança que, de momento, é até presidido pela potência agressora, enquanto a sua Assembleia Geral não tem a competência necessária nem a maioria inequívoca para obter um cessar-fogo.

A União Europeia tem conseguido reagir com um nível de unidade inusitado e em várias frentes, da proteção civil da população ucraniana ao apoio em armamento, às sanções contra a Rússia e à redução das suas dependências energéticas. A UE conta com o apoio da NATO e do clube ocidental G7, mas este, como se viu na sua última cimeira em Hiroxima, perdeu a hegemonia económica de outrora, pois representa 30% da economia mundial e 10% da população mundial. O G7 procura manter um papel geopolítico convidando até outros países como o Brasil e a Índia, só que estes influentes países têm também outros planos.

Além de presidirem ao G20, a Índia agora e o Brasil depois, estes países relançaram os BRICS com a China, Rússia e África do Sul com uma cimeira prevista para Agosto em Joanesburgo. Além disso, convidaram outros países não ocidentais como o Irão e a Arábia Saudita e reforçaram, com a presidência de Dilma Roussef, o Novo Banco de Desenvolvimento sediado em Xangai, com a intenção de escapar ao consenso de Washington, promovido pelo Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.

Por detrás de tudo isto, está a estratégia pacientemente tecida pela China com a sua nova Rota da Seda espalhada por todo o mundo, disputando no investimento em novas infraestruturas a influência que os EUA e UE procuram manter com os seus próprios investimentos e acordos de cooperação. Apesar de agora se falar mais em “redução de riscos” no excesso de interdependência, um real processo de “desconexão”, sobretudo entre EUA e China, é claramente visível no domínio digital, energético e industrial, para não falar do militar.

Acresce ainda que o chamado “Sul Global ”— onde a China aparece sempre associada ao chamado “G77” — está a emergir com posições mais articuladas a reclamar reformas da governação económica mundial que lhes permita, de facto, responder à mudança climática, à redução da pobreza e à implementação dos objectivos do desenvolvimento sustentável, que têm estado a recuar por forca da crise financeira, da pandemia e agora da guerra na Ucrânia.

Se estas tendências continuarem, não é difícil prever que teremos, além dum Ocidente que já não pode liderar o mundo sozinho, um sistema multilateral fragmentado e enfraquecido, incapaz de responder aos desafios globais em contra-relógio, do clima, à pobreza ou à inteligência artificial.

A União Europeia deveria ter a clarividência de perceber que o mundo mudou e vai mudar ainda muito mais.

A UE deve certamente manter o seu apoio firme a Ucrânia na sua luta contra o invasor e na defesa do seu direito democrático soberano. Deve preparar o novo grande alargamento com uma reforma institucional interna e envolver os países candidatos o mais cedo possível nas suas redes energéticas, digitais, de investigação e educação, na promoção do Estado de direito e dos direitos sociais e na coordenação estratégica das suas políticas externa e de segurança – como acabámos de ver na recente Cimeira da Comunidade Política Europeia na Moldova.

Mas se a União Europeia quiser acelerar as condições para trazer a paz de novo ao seu continente, tem de trabalhar ativamente para fazer mais aliados através do mundo, começando por ouvir os países do Sul Global na África, América Latina e Ásia e por atender aos seus problemas com soluções mais convincentes a construir em conjunto. É preciso reconhecer que estes países não têm condições equivalentes para implementar os objetivos do desenvolvimento sustentável, no que respeita ao acesso às tecnologias, mercados e recursos financeiros. Daí a necessidade de negociar uma reforma da governação económica global com base num Global New Deal, tal como está proposto para as cimeiras mundiais a promover pela ONU em 2023, 2024 e 2025, sob o impulso de António Guterres.

A UE tem também de afirmar uma posição clara quanto à concorrência estratégica entre EUA e China. De facto, a desconexão entre eles e a criação de duas ordens mundiais concorrentes não é do interesse da Europa. A UE deve prosseguir a defesa própria dos seus valores e interesses, mas a ambição de impor uma ordem europeia seria também absurda e irrealista. A verdadeira solução é trabalhar para padrões e mecanismos de governação baseados num cooperação internacional mais intensa e inclusiva, ou seja, para a renovação do sistema multilateral.

Trabalhar para novas regras globais na mudança ecológica, digital, social, comercial e financeira: é isso que a UE deveria promover na sua atual negociação com os EUA. E dizer o mesmo à China, se ela não quiser ser carimbada como rival estratégica.

Se a UE quiser acelerar o regresso da paz ao continente, tem de fazer mais aliados no mundo

Presidente da FEPS, Fundação Política Europeia; ex-ministra e eurodeputada

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2023-06-08T07:00:00.0000000Z

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