Público Edição Digital

A boneca de papel

Afonso Cruz

No Natal, rezavam-se três missas seguidas. De madrugada, as meninas eram levadas para o refeitório. A irmã gorda, sempre enlevada, atirou um sermão para o centro da cantina: Ó meus anjos, levai as minhas lágrimas para dentro dos ouvidos secos dos homens e suavizai o seu coração, deixai-me mostrar-lhes como a Divindade, com o mel das tempestades, nos ofereceu a vida eterna embrulhada na aparência da vida transitória; deixai-me dizer-lhes, meus anjos, que terão de fazer como as crianças, terão de rasgar, sim, meus anjos, de rasgar o papel e a carne e o peito para encontrar o brinquedo, o seu coração, a eternidade. Assim é a vida, um presente que é preciso desembrulhar vivendo e morrendo, a vida é, meus anjos, como uma pergunta, todas as perguntas têm no seu âmago a verdade: ao mastigá-las descobre-se o caroço, fere-se a boca, porque, meus anjos, a verdade magoa e a verdade deita sangue e a verdade sabe a cianeto como os caroços das cerejas.

Na mesa, havia para cada menina uma fatia dourada, duas ou três nozes, uma passa de figo e uma dúzia de uvas, que acompanham a ceia e, mais importante do que tudo o resto, um embrulho colorido atado com um laço. As meninas comiam com pressa de abrir o presente. A Sãozinha demorava um pouco mais, a Sãozinha sabia, de alguma maneira, que aquele momento de expectativa era especial, que a colocava num abismo antes do salto, antes de voar e que o aperto no peito é a mão de Deus a acariciar-lhe o coração, como a irmã gorda fazia aos seus gatos. Tinha um sorriso parado no rosto, a Sãozinha, preso à cara, dois arrepios percorreram-lhe o corpo, teve de inspirar com força, uma inspiração profunda, sonora e entrecortada. Devagar aproximou as mãos do embrulho, pegou numa ponta do laço, tentou desfazê-lo, precisou da ajuda da outra mão. Já não sorria, o momento era solene e grave, mordia o lábio inferior enquanto abria o embrulho. As outras meninas brincavam com os seus presentes. A Sãozinha fechou os olhos durante segundos, voltou a inspirar profundamente, abriu os olhos castanhos: é uma boneca. A boneca mais bonita que alguma vez vira. Uma boneca de papel.

Espaço Público

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2023-06-08T07:00:00.0000000Z

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