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Apoiar ou não apoiar o jornalismo?

Joaquim Fidalgo

No passado dia 3 de maio, o Governo francês aprovou o Decreto n.º 2023-331, que instituiu “uma ajuda excecional” visando compensar a subida de certos custos de produção (sobretudo o papel de jornal) das empresas editoras de imprensa “particularmente afetadas pelas consequências económicas e financeiras da guerra na Ucrânia”. Este apoio ronda os 5 milhões de euros.

Já em dezembro de 2022, o mesmo Governo tinha decidido atribuir uma ajuda excecional de 30 milhões de euros às “empresas editoras de imprensa mais tocadas pelo aumento de alguns dos seus custos de produção”, por considerar que “esse aumento põe em causa a capacidade da imprensa de cumprir a sua missão essencial de informação do público”, que dá corpo ao “valor constitucional do pluralismo”.

Estas são ajudas excecionais. Porque, para além disso, os meios de comunicação franceses (e designadamente a imprensa) beneficiam há muitos anos de ajudas permanentes que atingem valores dificilmente imagináveis para nós. Os apoios diretos de que a imprensa francesa beneficiou no ano de 2021 totalizaram 97 milhões de euros. Sim, 97 milhões de euros. E no ano anterior tinham sido 106 milhões de euros. Sim, 106 milhões de euros. A título de exemplo, o grupo dos jornais Le Parisien e Les Échos recebeu, em 2021, ajudas públicas no valor de 22,6 milhões de euros. O Le Monde recebeu, nesse ano, 12 milhões de euros. Para o grupo que edita o Le Figaro foram 8,6 milhões. O Libération teve direito a 7,6 milhões. O grupo de imprensa regional do

Ouest-France recebeu 5,8 milhões. Para o

L’Humanité foram 4,5 milhões de euros. E assim por diante…

Este panorama verifica-se há muitos anos. Os subsídios aos media são atribuídos com diversas justificações: há ajudas diretas com vista ao aumento da circulação de exemplares, há ajudas à distribuição dos diários de âmbito nacional, há ajudas ao pluralismo da imprensa regional e local, há ajudas às publicações nacionais com fracos recursos de publicidade, há ajudas aos diários regionais e locais com fracos recursos de pequenos anúncios, há ajudas à expedição de jornais pelo correio, há ajudas integradas num “fundo estratégico para o desenvolvimento da imprensa”, há “fundos de apoio a projetos emergentes e à inovação na imprensa”. Tudo isto destinado a, segundo a justificação do Governo francês, satisfazer três objetivos essenciais: “O aumento da difusão de imprensa, a defesa do pluralismo, e a modernização e diversificação das empresas de imprensa no caminho para o multimédia.”

Mas não é só de ajudas diretas que beneficiam os media e o jornalismo em França. Há também um conjunto largo de ajudas indiretas, como, por exemplo, uma taxa “super-reduzida” de IVA a 2,1% para as empresas de imprensa (papel e online), diversas isenções de impostos e de taxas sociais, crédito fiscal para uma primeira assinatura de uma publicação jornalística de informação geral, apoios aos media de informação social de proximidade, apoios às rádios associativas locais, benefícios fiscais para os próprios jornalistas. Para se ter uma ideia global, o somatório de todos os apoios (diretos e indiretos) à imprensa e aos media franceses, tal como aparece no Orçamento do Estado para 2023, ascende a 197 milhões de euros.

Apesar da generosidade deste financiamento, não deixa de haver controvérsias no setor. Há quem se queixe da alguma falta de transparência do Governo na atribuição dos apoios, há quem critique o facto de as maiores fatias do “bolo” irem parar aos bolsos dos grupos economicamente mais poderosos, há ainda quem critique o facto de as ajudas continuarem a privilegiar os jornais em papel, quando as suas tiragens continuam a descer e, pelo contrário, aumentam as vendas e assinaturas de publicações online (que só há poucos anos começaram a ter acesso a alguns destes benefícios). Não obstante, o modelo vai-se mantendo, com mais ou menos ajustes, sempre com o pressuposto de que os meios de comunicação social prestam um serviço público essencial à democracia e, por isso, devem ser apoiados pelo Estado tal como outros serviços essenciais: educação, saúde, cultura…

Sublinhe-se que esta opção por apoiar a imprensa e os media com dinheiros públicos não é exclusiva de França. Esquemas semelhantes existem na Noruega, na Finlândia, em Itália, na Dinamarca, na Áustria… em muitos países europeus. Ainda assim, o tema continua a ser de difícil abordagem em Portugal, apesar de tímidas tentativas, aqui e ali, de o trazer ao debate público. Mas a verdade é que os media portugueses estão quase todos numa situação económica difícil, com índices de consumo muito baixos, com receitas de publicidade em queda contínua, com diminuição drástica do número de jornalistas e, no fundo, com o espectro do encerramento à frente dos olhos. Já alguns ficaram pelo caminho — e não é nada improvável que mais fiquem. Ou então que se vejam obrigados, para sobreviver, a aceitar uma série de compromissos que os afastam da sua missão mais nobre de informar com rigor e independência.

Independência: é sempre o argumento que se ergue quando se aventa a hipótese de o Estado financiar os media. Parte-se do pressuposto de que receber dinheiros “do Estado” é caminho obrigatório para se ficar dependente “do Governo”. Há esse perigo, claro. Mas há também modos de o prevenir, estabelecendo regras claras para a atribuição de apoios e esquemas efetivos para a sua fiscalização. E quando todos os meios de comunicação recebem ajuda, não é crível que fiquem todos submetidos aos ditames do Governo em funções… Veja-se a imprensa francesa, que é tão subsidiada e que é tão crítica de quem governa o país.

Se se recusa uma política de subsídios públicos por receio de que ponham em causa a independência política dos media, acaba-se a pôr em perigo a sua independência económica, como vemos bastante em Portugal. Publicações economicamente muito frágeis, lutando pela sobrevivência, acabam por aceitar esquemas de compra e venda de informação que, na prática, as tornam completamente dependentes dos ditames dos anunciantes e lhes dificultam a produção de informação realmente fiável, rigorosa e autónoma. A proliferação de “conteúdos patrocinados” e de formas variadas de publicidade disfarçada, ou de acordos comerciais destinados à promoção sub-reptícia de eventos e instituições, leva por vezes a um autêntico mercado de notícias e reportagens, que não são feitas a partir de critérios jornalísticos, mas apenas porque alguém pagou para que se fizessem. E onde fica, então, a independência? Onde fica a qualidade da informação tão necessária ao exercício de uma cidadania exigente e responsável?

Se se recusa uma política de subsídios públicos por receio de que ponham em causa a independência política dos media, acaba-se a pôr em perigo a sua independência económica

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2023-06-08T07:00:00.0000000Z

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