Público Edição Digital

Fardas, óculos escuros e cânticos revolucionários

Nuno Pacheco Jornalista. Escreve à quinta-feira

Costuma chegar mais tarde, depois do Verão, mas desta vez adiantou-se. E traz fardas, cantos revolucionários (como de costume) e óculos escuros — não os benignos, que protegem dos raios de sol, e sim outros mais sinistros, que adornaram ditadores latino-americanos nos anos 60 e 70. Trata-se do Encontro da Canção de Protesto, agora na sua quinta edição (a primeira foi em 2019, em Outubro), que em 2022 levou a Grândola, terra onde nasceu e o acolhe, vozes de Portugal, Brasil, França, Itália, Catalunha e Ucrânia (Dominique Grange, Maria del Mar Bonet, Borja Penalba, Marina Rossell, Modena City Ramblers, Zeca Medeiros, Filipa Pais, Kateryna Àvdysh e jovens cantores e músicos brasileiros) e que agora tem por tema “A Canção de Protesto no Espaço Ibero-Americano”.

Se o encontro se realizasse em Setembro, como tem sido habitual, acertaria na “mosca”, porque vão completar-se nesse mês 50 anos do golpe militar de Pinochet no Chile (11 de Setembro de 1973) e do assassinato de Victor Jara (16 de Setembro), nome maior da canção latino-americana. Ainda assim, Jara estará em destaque este ano, com a projecção do documentário El derecho de vivir en paz (1999) da realizadora chilena Carmen Luz Parot, filme que, em DVD, integrou uma edição especial, em CD duplo, da antologia de Victor Jara com o mesmo nome (El derecho de vivir en paz) editada pela Warner no Chile em 2003.

Quem for a Grândola, terá já amanhã a inauguração, às 18h, de uma exposição intitulada A Canção de Protesto e as Ditaduras Ibero-Americanas, seguida de um concerto no mesmo espaço, a Biblioteca e Arquivo de Grândola, d’A Garota Não (18h30). E à noite, ao ar livre, no Jardim 1.º de Maio, haverá um concerto intitulado Estravagarios, com alguns músicos históricos do grupo chileno Quilapayún, que no dia seguinte, no Cineteatro Grandolense, após a exibição do filme de Carmen Luz Parot (15h), participarão às 17h num debate (há outros) dedicado à canção de protesto na América Latina: Patrício Wang, Rodolfo Parada e Patricio Castillo (este à distância), que viriam a integrar, a partir de 2003, a formação dos Quilapayún em França. A mesma França onde se exilou em 1964 o cantor e compositor Luís Cília, pioneiro no exílio da canção de resistência à ditadura de Salazar e Caetano em Portugal, que também participa neste debate.

A participação de Cília terá ainda outra justificação histórica: ele esteve presente, ao lado de muitos outros cantores latino-americanos e europeus, no I Encuentro de la Canción Protesta, realizado em Cuba, em Julho e Agosto de 1967, na Casa de Las Américas, que acabou por ser o detonador do movimento Nova Trova Cubana e um incentivo às canções de protesto não só na América Latina como na Europa, onde Portugal e Espanha eram ainda governados por ditaduras.

Porém, se o encontro em Cuba teve um efeito multiplicador do género, a verdade é que a dita “canção de protesto”, ou “canção de texto”, ou “revolucionária”, é muito anterior em vários países, suscitada em particular na América Latina pela pobreza, pela discriminação e opressão a que eram sujeitos os seus povos, mesmo antes da onda de golpes militares dos anos 60 e 70. As vozes de Violeta Parra (1917-1967) e Victor Jara (1932-1973), no Chile; Atahualpa Yupanqui (1908-1992) e Mercedes Sosa (1935-2009), na Argentina; Judith Reys (1924-1988), no México; ou Daniel Viglietti (1939-2017), no Uruguai, já antes se levantavam contra as injustiças.

Só que a revolução cubana de 1959 e, depois, a vitória de Salvador Allende no Chile em 1970, em plena Guerra Fria, levaram a um recrudescer dos golpes militares e das ditaduras na América do Sul, apadrinhadas e incentivadas por um vizinho do Norte (os EUA) aterrado com a possibilidade de um sul “vermelho” e subordinado aos ditames da então União Soviética. Daí ao surgimento ou incentivo de ditadores assassinos como Pinochet, Videla, Stroessner ou Banzer foi um passo, marcado a sangue e a milhares de assassinatos, onde se incluiu a infame Operação Condor.

Desses tempos de terror ficaram memórias sofridas, muitas delas plasmadas em canções. Em Grândola, ouviremos algumas. Não só por vozes chilenas, mas também pela do galego Miro Casabella (sábado à noite, no Jardim 1.º de Maio, antes de no mesmo palco cantar Vitorino), que integrou o grupo Voces Ceibes, quando Franco, como Pinochet, ainda se exibia impante, de óculos escuros, numa Espanha martirizada pela censura e pelo garrote. Enfim, de sexta a domingo, são memórias o que Grândola tem para nos oferecer. Enquanto nos pudermos servir delas, tirando as devidas lições, estaremos mais aptos para enfrentar os males do mundo.

Espaço Público

pt-pt

2023-06-08T07:00:00.0000000Z

2023-06-08T07:00:00.0000000Z

https://ereader.publico.pt/article/281608129830780

Publico