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Destruição de barragem prejudica contra-ofensiva da Ucrânia

Ainda não se sabe o que aconteceu ao certo em Kakhovka, mas há impactos negativos para ambas as barricadas da guerra

João Pedro Pincha

As operações de busca e salvamento continuaram ontem nas quase 30 localidades da região de Kherson até agora inundadas devido à destruição da barragem de Kakhovka, no Sul da Ucrânia. Os serviços de socorro ucranianos dizem ter conseguido resgatar mais de 1700 pessoas das zonas afectadas e os esforços devem prosseguir nos próximos dias, uma vez que a água ainda não atingiu o seu nível máximo e dezenas de outras aldeias e vilas podem vir a ficar total ou parcialmente submersas em ambas as margens do rio Dnieper.

A causa do rebentamento da barragem ainda é incerta, com Rússia e Ucrânia a acusarem-se mutuamente de o terem feito de propósito, mas as suas consequências humanas e ambientais começam a revelar-se: mais de 42 mil pessoas podem vir a sofrer impactos directos, a península da Crimeia terá problemas no acesso a água potável, pelo menos 150 toneladas de petróleo foram derramadas na água e podem passar anos até que o ecossistema recupere. O Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, sugeriu uma investigação internacional independente para apurar as causas da destruição da infra-estrutura.

“A verdadeira dimensão da catástrofe só começará a ser conhecida na totalidade nos próximos dias”, admitiu no Conselho de Segurança da ONU, na terça-feira à noite, o subsecretário-geral das Nações Unidas para os Assuntos Humanitários. A destruição de Kakhovka “terá consequências graves e de longo alcance para milhares de pessoas no Sul da Ucrânia, em ambos os lados da linha da frente, com a perda de casas, alimentos, água potável e meios de subsistência”, disse Martin Griêths.

Os ucranianos estão a prestar auxílio à população na zona que controlam, a margem direita, e acusam os russos de terem abandonado os civis à sua sorte na margem esquerda. Ontem começou a circular um vídeo que mostra um drone ucraniano a entregar uma garrafa de água a uma mulher, cuja casa está rodeada por água, alegadamente na localidade de Oleshky, controlada pela Rússia.

“A meio do dia, as comunicações foram cortadas e tive medo que os russos nos levassem à força para a Crimeia”, disse ao Le Monde um morador de Nova Kakhovka. É a cidade mais próxima da barragem, está sob ocupação russa e foi onde o governador nomeado por Moscovo gravou um vídeo em que garantia que “todas as localidades estão a viver normalmente”, enquanto atrás de si se via a água a cobrir completamente uma praça. “A administração dos ocupantes foi-se embora e levou tudo. Nova Kakhovka é uma cidade morta. Sobra um serviço de emergência e mais nada. O hospital, as clínicas e as farmácias fecharam. Todo o material de valor foi levado pelos russos”, denunciou o morador ao jornal francês.

Alguém ganha?

Equipas de socorro ucranianas dizem ter resgatado mais de 1700 pessoas das zonas afectadas, na região de Kherson

As inundações têm também um impacto militar imediato, ao impossibilitarem uma travessia do Dnieper possivelmente durante semanas. “Se nós tínhamos algum plano para uma operação ali, certamente não o vamos fazer num futuro próximo”, admitiu ao Financial Times um militar ucraniano, sob anonimato.

Na região de Kherson é o rio que separa as tropas da Ucrânia e da Rússia e o seu atravessamento era considerado uma das vias prováveis da contra-ofensiva ucraniana, há muito anunciada. À sua passagem ao largo da cidade, o Dnieper tinha já uma largura considerável, que chegava a um quilómetro na zona da foz, mas agora poderá atingir o dobro ou o triplo da dimensão. Mais tarde, quando toda a água da barragem escoar, a área tornar-se-á ainda mais pantanosa do que já era.

“Não vejo nada de vantajoso para a Ucrânia neste caso. É mais uma infra-estrutura destruída, mais uma unidade de produção eléctrica destruída, mais sofrimento para os civis e uma limitação nas opções ofensivas

Este desastre não beneficia ninguém e vai afectar sobretudo o território ocupado pela Rússia

Michael Kofman Analista militar

e logísticas ucranianas”, disse ao L’Obs o consultor francês Stéphane Audrand.

Além das mudanças concretas no caudal do rio, um porta-voz das Forças Armadas da Ucrânia afirmou que a prioridade é a assistência à população afectada. E enquanto ela durar, é muito improvável que se efectuem manobras militares naquela zona.

Militarmente, a Ucrânia sofre um revés ainda por outro motivo: sendo mais difícil atacar na região de Kherson, a Rússia pode reforçar a frente Leste com os militares que agora estão a sul do Dnieper.

Sublinhando que “não consegue fazer uma avaliação definitiva sobre a responsabilidade” pela destruição da represa, o norte-americano Instituto para o Estudo da Guerra diz que “os russos têm um interesse maior e mais claro em inundar a parte final do Dnieper, apesar dos danos causados às suas próprias forças e posições defensivas, do que os ucranianos”.

Já o analista militar Michael Kofman, que tem seguido a guerra de perto, não concorda e diz que “este desastre não beneficia ninguém e vai afectar sobretudo o território ocupado pela Rússia”. Ao Financial Times, Kofman afirma que “a ameaça de uma travessia do rio pelos ucranianos sempre foi baixa”.

A sua avaliação tem alguma proximidade com a de um jornal russo, o Kommersant, que segundo o correspondente da BBC em Moscovo, Steve Rosenberg, diz na sua edição desta quarta que o colapso da barragem “não traz vantagens nem para a Rússia nem para a Ucrânia”. Se, por um lado, “pode atrasar uma ofensiva ucraniana naquela zona”, por outro, acrescenta o jornal, “pode destruir as linhas defensivas russas”.

“Quem quer que tenha rebentado com a barragem”, escreve também na BBC o repórter especializado em segurança Frank Gardner, “mexeu com o tabuleiro de xadrez estratégico no Sul da Ucrânia, forçando ambos os lados a fazer um conjunto de ajustamentos e possivelmente adiando a próxima jogada da Ucrânia”.

Guerra Na Ucrânia

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2023-06-08T07:00:00.0000000Z

2023-06-08T07:00:00.0000000Z

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