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Depois da ocupação, ucranianos recusam fugir das inundações

Pamela Constable e Serhii Korolchuk

Na região de Kherson

Onível da água não parou de subir durante todo o dia no quintal de Valentyna Mirilko. A corrente do rio Inhulets inundado, um afluente do Dniepre, arrastava árvores arrancadas e outros destroços ao passar nesta vila remota, a 40 quilómetros da enorme barragem da central hidroeléctrica de Kakhovka, que explodiu na terça-feira, naquilo que as autoridades ucranianas descreveram como um acto de sabotagem da Rússia.

A meio da tarde, quando a água da represa destruída corria por esta região plana de campos de trigo e melancia, com o quintal já transformado num lago, Mirilko, mãe de dois filhos, lá se mudou com a família para a casa de um vizinho. Tinha medo que o rio continuasse a subir, mas insistiu que nunca aceitaria deixar a sua terra.

“O que sofremos com os russos foi muito mais difícil”, disse Mirilko, de 41 anos, referindo-se com amargura aos quase nove meses de ocupação desta zona, no ano passado. “Rezámos e rezámos para os soldados se irem embora, e estou tão feliz por termos a nossa querida casa de volta. Se tiver de subir e dormir no telhado até o rio acalmar, tudo bem. Nasci aqui e vou ficar aqui.”

A Rússia responsabilizou a Ucrânia pelo rompimento da barragem. A destruição causada pela ocupação russa e pelos ferozes combates das forças ucranianas para recuperar o território ficaram evidentes na terçafeira em toda a região a sul de Kherson, a primeira a sentir o impacto da invasão de Vladimir Putin e que agora absorve as consequências do desabamento da barragem. O desastre fez com que muitos milhões de litros de água escapassem do reservatório circundante. Aldeia após aldeia, esta zona fértil, mas miserável, exibe as cicatrizes da violência. Casas agrícolas, galinheiros e estábulos mostramse vazios, os seus telhados e paredes ruíram, as suas fundações estão cobertas de mato.

Na cidade portuária de Kherson, perto da barragem destruída em Nova Kakhovka no rio Dniepre, os residentes repetiam a promessa de ficar. Na capital regional, que antes da guerra tinha uma população de 290 mil pessoas, a polícia e a protecção civil correram a retirar os moradores do perigo, mas foram poucos os que se foram embora: a meio da tarde, os responsáveis regionais informavam que 1335 casas ficaram gravemente danificadas e que 1364 pessoas tinham deixado a região.

Os ucranianos ao longo do rio Dniepre, na parte ocupada de Kherson, parecem partilhar uma determinação idêntica. Kate Jsuska, que gere uma organização sem fins lucrativos que ajuda os habitantes, disse que só algumas pessoas tinham aproveitado as operações de evacuação. A maioria vive em algumas ruas que ficaram fortemente inundadas.

“Outros tiveram a sua sanidade mental afectada com tudo o que aconteceu no último ano e meio”, afirmou. “Se a nossa casa não foi tocada, então está tudo bem”, disse ainda, resumindo o sentimento que muitos tinham expressado.

Um vídeo produzido pela emissora pública ucraniana que circulou na terça-feira mostras duas jovens não identificadas na cidade de Kherson, uma delas com um enorme cão castanho ao colo. Um pouco ofegante, diz que em sua casa a água chegava “até à cintura” e que “até se pode pescar dentro de casa”. A outra pergunta-lhe por que é que está a levar o cão para um lugar seguro, se tinha decidido não partir. “Não podíamos deixá-lo sozinho agora, mas não vamos sair de casa”, respondeu. “Vamos esperar e depois voltar para casa.”

A barragem de Kakhovka, que fornece água a grande parte do Sul da Ucrânia, foi capturada pelos russos ainda em Fevereiro de 2022, no primeiro mês na guerra, numa acção estratégica que visava perturbar o fornecimento de energia hidroeléctrica na Ucrânia, e, ao mesmo tempo, permitir que a água fluísse para a península da Crimeia. Quando a Rússia ocupou e anexou ilegalmente a península, em 2014, Kiev cortou o abastecimento de água.

O Ministério da Protecção Ambiental e dos Recursos Naturais ucraniano avisou que uma queda dramática das reservas de água da barragem poderia complicar a refrigeração da central nuclear de Zaporijjia, a 150 quilómetros de Nova Kakhovka, sob controlo russo.

As inundações do rio Dniepre ameaçam dezenas de comunidades na região baixa de Kherson, grande parte ocupadas pelas forças russas no ano passado, mas libertada depois pela Ucrânia. A polícia e as equipas de emergência evacuaram muitas vilas, transferindo milhares de pessoas de comboio para se abrigarem noutras cidades.

Responsáveis da agência estatal que antes controlava a barragem dizem que as explosões ocorreram dentro da casa das máquinas, destruindo a estação eléctrica. Volodymyr Kovalenko, presidente da câmara de Nova Kakhovka, onde a barragem foi construída em 1956, disse que estava em contacto com residentes na margem leste que descreveram inundações em parques e num jardim zoológico.

Kherson, uma região em grande parte agrícola onde viviam 1,2 milhões de pessoas antes da guerra, usa a água da barragem para irrigar os campos.

A meio da manhã de terça-feira, um morador na cidade disse que o rio tinha subido um metro e meio. Na margem leste ocupada pelos russos, “a área está totalmente coberta de água”, descreveu por telefone Dmytro Fomin, dono de um barco que há anos transporta pessoas no rio. Mas nas vilas afectadas ao longo do rio Inhulets, até os residentes com medo que as águas continuassem a subir disseram que preferiam ficar em casa e esperar até que baixem. Yania Lomya, de 32 anos, empurrava o seu filho bebé num carrinho, na terça-feira à noite, acompanhada por outras três mães. Gansos e galinhas grasnavam num curral próximo, uma vaca amarrada mugia ocasionalmente.

“Passámos uns longos nove meses com os russos aqui, a chegarem com armas e a revistar as nossas casas”, disse Lomya. “Costumávamos cultivar girassóis e trigo na nossa quinta, mas tivemos de vender metade das nossas terras, para além dos porcos e das cabras, para sobreviver. Agora está tudo tranquilo e queremos ter as nossas colheitas de volta, ter mais animais. Estamos a ver a água, mas não queremos sair nunca mais das nossas casas.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

Guerra Na Ucrânia

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2023-06-08T07:00:00.0000000Z

2023-06-08T07:00:00.0000000Z

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