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A viúva de Jorge Luis Borges que geriu a obra do escritor com mão firme (e fazendo muitos inimigos)

Companheira do autor nos seus últimos anos, foi uma figura polémica e enfrentou várias batalhas jurídicas

Daniel Dias

A escritora e tradutora argentina María Kodama, viúva e responsável pela gestão da obra do escritor Jorge Luis Borges, morreu ontem aos 86 anos. “Agora entrarás no ‘grande mar’ com o teu querido Borges. Descansa em paz, María”, escreveu o seu representante legal, Fernando Soto, no Twitter.

Após a morte de Jorge Luis Borges (1899-1986), María Kodama herdou os direitos autorais da obra do argentino, que conheceu em Buenos Aires numa palestra do escritor sobre literatura islandesa, quando ainda era estudante. Filha de mãe argentina e pai japonês, casou-se com Borges em 1986, dois meses antes da morte do autor de Ficções (1944) e O Aleph (1949).

Antes disso, passara anos a trabalhar para ele. Borges sempre mantivera uma relação próxima com a mãe, Leonor Acevedo, que quando o escritor ficou cego, aos 55 anos, se tornou sua assistente pessoal. Após a morte desta, em 1975, com 99 anos, Kodama tomou o seu lugar como secretária literária do gigante da literatura argentina.

Foi então que começou a estar mais com Borges — que, a convite de diferentes instituições internacionais, viajou muito nos seus últimos anos de vida. Os dois colaborariam em Breve antologia anglo-saxónica (1978) e Atlas (1984), o derradeiro livro de Borges a ser publicado antes da sua morte.

Num testamento datado de 1979, Jorge Luis Borges viria a transferir para Kodama os direitos autorais da sua bibliografia. Seis anos depois, legava-lhe todos os seus bens. Quando os dois se casaram, a 26 de Abril de 1986, no Paraguai, o autor era já doente oncológico. Morreria a 14 de Junho do mesmo ano, de cancro do fígado.

Após a morte de Borges, Kodama, enquanto responsável por gerir o legado das suas palavras e a circulação das mesmas, rompeu um acordo antigo entre o falecido marido e Norman Thomas di Giovanni, editor e tradutor norte-americano que colaborou com Borges durante anos, tendo traduzido para inglês vários livros seus. O acordo previa uma divisão igualitária dos direitos de autor destas traduções entre os dois.

O trabalho de di Giovanni foi importante para Borges ganhar notoriedade (e, consequentemente, mais contratos lucrativos com editoras) no mundo anglo-saxónico. “O dinheiro nunca significou nada”, disse o tradutor ao The Guardian em 2010, reflectindo sobre a decisão tomada por Kodama de cancelar o acordo. O jornal britânico escrevia então que embora Borges fosse fluente em inglês, o seu vocabulário era “antiquado”, razão que teria estado por trás da partilha de direitos autorais com di Giovanni.

Kodama viria a encomendar traduções novas a Andrew Hurley, que muitos consideram bastante inferiores às suas antecessoras.

Mas a viúva de Borges também protagonizou outras disputas judiciais, tendo processado biógrafos do escritor como os argentinos Juan Gasparini e Alejandro Vaccaro. “Vaccaro inventa a minha vida e a de Borges”, acusaria, em declarações ao jornal francês Courrier International em 2006.

Kodama protagonizou ainda desentendimentos altamente mediáticos com a editora francesa Gallimard. Opôs-se à reedição das obras completas do falecido marido na Bibliothèque de la Pléiade, prestigiada colecção deste grupo editorial. A argumentação: as observações que acompanhavam o trabalho de Borges, procurando analisá-lo e fornecer detalhes sobre a vida do autor, estariam cheias de erros.

María Kodama processou igualmente Jean-Pierre Bernés, o editor da Bibliothèque de la Pléiade e também amigo e tradutor de Jorge Luis Borges. Pretendia que aquele cedesse definitivamente as gravações das conversas que tivera com o autor em 1986 e que o ajudaram a escrever as anotações da primeira edição. A batalha jurídica estendeu-se ao longo de vários anos, tendo atrasado a republicação das obras de Borges em francês. E Bernés teve mesmo de abdicar daos registos.

Num texto escrito para a revista Le Nouvel Observateur (hoje L’Obs) em 2006, numa altura em que este processo ainda decorria, o jornalista Pierre Assouline, autor de várias biografias — entre as quais de figuras como o lendário fotógrafo Henri Cartier-Bresson e de Hergé, o cartoonista belga por detrás do famosíssimo Tintin —, acusou María Kodama de ser “um obstáculo à divulgação das obras de Borges”. E também questionou a “validade” do seu curto casamento, o que levou a viúva do escritor a avançar com um processo por difamação. Em tribunal, pediria apenas uma compensação simbólica de um euro.

María Kodama foi até à sua morte a presidente da Fundação Internacional Jorge Luis Borges, que fundou em 1988. Tradutora de autores estrangeiros para editoras da América Latina, foi também professora de literatura argentina na Universidade de Buenos Aires. Morreu aos 86 anos em Vicente López, vítima de cancro da mama. Borges faleceu com a mesma idade. Com Lusa

Ciltura

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2023-03-27T07:00:00.0000000Z

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