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Entre Vila Real e Alcanena, há um mapa de cineteatros em rede com o país real

Neste ano de arranque efectivo da Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses, 39 equipamentos foram contemplados com a nova linha de apoio financeiro da Direcção-Geral das Artes. Visitámos dois deles

Sérgio C. Andrade Texto Manuel Roberto Fotografia

teatros do país”, regozija-se a vereadora Mara Minhava, que, entre os vários pelouros a seu cargo tem também o da Cultura. “Foi o reconhecimento do trabalho que o teatro tem vindo a desenvolver nos últimos anos, não só ao nível da programação, mas também na captação e formação de novos públicos”, acrescenta a vereadora socialista.

Entre as contrapartidas obrigatórias para a concessão deste apoio encontra-se a atenção à comunidade e à democraticidade da programação. Dando o exemplo de O Cavaleiro da Dinamarca, esta professora e formadora licenciada em Línguas e Literaturas Modernas realça que “a ideia de cultura para todos” é uma das traves mestras da política da autarquia.

Rui Araújo lembra a circunstância de este ser, com o seu congénere de Bragança, “o único equipamento do género em Trás-os-Montes”. “Temos sobretudo a preocupação de ir ao encontro da diversidade dos públicos, o que não significa programar em função de uma espécie de referendo”, diz este escritor e jornalista que dirige o teatro desde 2014, mas nele trabalha há duas décadas, tendo ajudado a definir o programa arquitectónico do edifício.

“Sentimos também a obrigação de liderar o gosto. Mas temos muito cuidado em programar diferentes sensibilidades, diferentes estéticas e diferentes géneros artísticos — a música, por exemplo, desde a clássica à avant-garde.”

Rui Araújo dá como exemplo os dois festivais que marcam o início de cada ano: em Janeiro, o Festival Ano Novo, para a música clássica; em Fevereiro, o Boreal — Festival de Inverno, dedicado à música moderna portuguesa e sobretudo aos artistas emergentes.

Nas artes performativas, o director chama a atenção para a aposta em co-produções nacionais que, em alguns casos, têm mesmo estreia na capital de Trás-os-Montes, lamentando a desatenção da comunicação social. Cita o caso da peça Pulmão, uma co-produção com a companhia de Lisboa Causas Comuns, que se estreou em

Novembro em Vila Real “mas só foi falada quando chegou a Lisboa”.

“A visibilidade é muito reduzida face àquilo que fazemos no terreno”, queixa-se o director artístico. “Vila Real é uma terra do interior, mas acompanha as tendências e a arte que se faz em Portugal, e até lá fora”, acrescenta, avançando estarem já agendadas para este ano novas co-produções, uma delas com o Teatro do Vestido, de Lisboa, incluindo residência artística em Vila Real.

Como tem sido a recepção do público? “Este início de ano está a correr bastante bem. Em Janeiro voltámos a ultrapassar os 70% na ocupação das salas, o que nos aproxima dos 80% que tínhamos antes da pandemia”, nota o programador, realçando o carácter “muito diverso” dos públicos de “um concelho que faz a transição entre o mundo rural e o mundo urbano”.

No primeiro fim-de-semana de Março, estreou-se com casa cheia O Cerejal, de Tchékhov, criação da Filandorra — Teatro do Nordeste, um grupo local que se viu excluídos do Programa de Apoio Sustentado da DGArtes (ver texto ao lado). Sobre este caso, Mara Minhava diz ter já questionado o Ministério da Cultura sobre a desatenção que o resultado do concurso manifesta relativamente a Trás-os-Montes.

“Vila Real está junto com o Norte Litoral e com a Área Metropolitana do Porto; é urgente criar outra NUT para que a cidade e outras do interior consigam ter espaço para se afirmar”, defende a vereadora, lembrando que a autarquia continua a apoiar a Filandorra e as outras companhias do concelho.

Hoje, a assinalar o Dia Mundial do Teatro, o teatro acolhe a peça Entrelinhas (2015), criação conjunta de Tiago Rodrigues e Tónan Quito.

Entre a serra e a dança

“Sendo o único teatro municipal aberto, temos de servir todos os públicos”, diz André Conceição, do Cine-Teatro São Pedro

Para quem desce a A1 em direcção a Lisboa, Alcanena é vila que talvez só mereça o desvio para uma visita ao Museu de Aguarela Roque Gameiro, ao festival Materiais Diversos, na vizinha Minde, ou às grutas e Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros. Mas quem ruma a esta pequena localidade com cerca de cinco mil dos 13 mil habitantes do concelho chega à Praça 8 de Maio, marginada pelo edifício da Câmara Municipal, pela Casa da Cultura e pelo Cine-Teatro São Pedro.

Ao início de uma tarde soalheira de Fevereiro, e mesmo sendo dia de feira, o PÚBLICO encontrou a praça deserta. Apenas uma ou outra pessoa cruzava o átrio dos paços do concelho, em direcção aos gabinetes, enquanto se esperava que a recepcionista regressasse da sua hora de almoço.

O tempo passa devagar neste Portugal interior. Mas a situação altera-se sempre que o cineteatro abre as suas portas, o que acontece uma ou duas vezes por semana, com as sessões quinzenais de cinema e espectáculos de música, teatro ou dança, além de uma ou outra iniciativa virada para as escolas e as associações locais.

O São Pedro mantém ainda a fachada típica de um teatro de província de meados do século XX. Projectado pelos arquitectos José Lima Franco (1904-1970) e Raul Tojal (1899-1969), foi inaugurado a 20 de Novembro de 1954, com um espectáculo da Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, uma soirée que é ainda recordada numa parede do segundo piso.

Depois de ter estado quase em ruína durante uma década, na viragem do século, reabriu em 2008, com algumas inovações impostas pelos novos tempos. Perdeu a patine dos quatro camarotes e do balcão da planta original para se transformar num funcional auditório de 300 lugares, a que se acrescentou uma régie — que vai agora ser equipada com um projector DCP (Digital Cinema Package), para o qual recebeu um apoio de 150 mil euros ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência —, uma galeria de exposições e um bar, além de salas para ensaios e actividades educativas.

“Pedagogia cultural”

“Estamos a fazer um trabalho de reconstrução da actividade do cineteatro a partir de uma reflexão sobre o que é programar e desenvolver uma oferta cultural de proximidade com a comunidade”, diz ao PÚBLICO Marlene Carvalho, vereadora eleita na lista do PSD, e

que associa igualmente a Cultura a várias outras pastas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, a professora presidiu anteriormente à Junta da Freguesia da Serra de Santo António.

“A minha experiência como presidente da junta mostrou-me que as freguesias, nestes contextos mais pequenos e rurais, não conseguem fazer o caminho sozinhas”, nota Marlene Carvalho, defendendo que “as autarquias têm um papel muito importante no desenvolvimento de um pensamento que não se centre apenas na sede de concelho ou numa programação mais apurada para um determinado patamar de público”.

Foi esta consciência que levou a Câmara de Alcanena a avançar com a candidatura à RTCP, que viria a dotar o cineteatro com um apoio anual de 50 mil euros até 2026.

André Conceição, licenciado em Comunicação Social e Educação

Multimédia no Politécnico de Leiria e ligado ao mundo da dança e, desde o início, ao festival Materiais Diversos, é o responsável pela programação do São Pedro, com o qual já trabalhava antes de 2021.

“Foi sorte ter coincidido com uma mudança de executivo. Vínhamos de uma política de cultura mais virada para o popular; passámos para uma visão mais contemporânea”, diz o programador, relevando também o facto de a entrada na rede ter proporcionado mais dinheiro para concretizar esse projecto.

Com um orçamento anual próximo dos 80 mil euros, o Cine-Teatro São Pedro, cuja equipa conta com quatro pessoas a tempo inteiro, quer não só continuar a chamar as pessoas à sua plateia, mas tornar-se simultaneamente “um pólo de descentralização”, levando eventos às comunidades rurais, acrescenta Marlene Carvalho. E cita, a título de exemplo, o concerto da pianista Marta Menezes num velho moinho na aldeia da Serra de Santo António.

A equipa responsável pela programação quer apostar “num trabalho de pedagogia cultural”, que passa, acrescenta a vereadora, por “equilibrar aquilo que é mais popular e que chama mais as pessoas com um contributo para a literacia da comunidade”.

O Cine-Teatro São Pedro orgulha-se da diversidade da sua programação de proximidade com a comunidade

É assim que o São Pedro tanto aposta em espectáculos da companhia de Oliveira do Bairro Crash Babies, que faz música para bebés a partir da percussão de materiais reciclados (e que teve menos gente do que se esperaria, em meados de Fevereiro), como em noites de fados ou de stand-up (a última, com Guilherme Duarte, encheu a sala em Janeiro).

É verdade que o cineteatro não tem ainda as condições ideais para recuperar os antigos fiéis e conquistar novos públicos. Há problemas estruturais, ao nível do ar condicionado. “Precisa urgentemente de um sistema de aquecimento e de condições de acessibilidade e de melhor conservação”, admite Marlene Carvalho, adiantando estar já em curso uma auditoria para avaliar o que deve ser feito.

André Conceição acrescenta que a programação está “a chegar a outros públicos que não frequentavam o São Pedro”, uma fidelização que passa também, por exemplo, pela parceria com o vizinho festival Materiais Diversos.

“Sendo o único teatro municipal aberto, temos mesmo de tentar servir todos os públicos. E não me choca ter uma peça super contemporânea e, na semana a seguir, uma revista à portuguesa, ou uma noite de fado. Esta aparente esquizofrenia da programação é necessária num espaço como este, onde temos de ir ao encontro das pessoas. Será a nossa maior conquista”, acredita André Conceição.

Dia Mundial Do Teatro Cultura

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