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“A maior felicidade da vida é ajudar os outros e fazê-los felizes”

Henry Marsh Neurocirurgião durante mais de 40 anos, o inglês passou para o lugar de paciente depois de um diagnóstico de cancro avançado. Hoje conta essa experiência num livro publicado agora em Portugal

Teresa Serafim

Henry Marsh passou a vida a ver exames cerebrais de doentes. Mas, quando se pôs a hipótese de fazer ele próprio uma ressonância magnética ao cérebro, até lhe parecia algo engraçado e que não seria para levar a sério. Fê-la e era, afinal, algo bastante sério: o neurocirurgião, já reformado, tinha um cancro em estado avançado.

É o relato dessa passagem de médico para paciente que conta no livro E por fim — questões de vida e morte, que chega agora a Portugal pela Lua de Papel. Após um período de tratamentos, o cancro está em remissão. “Agora sinto-me bem. Provavelmente, o cancro voltará, mas espero que não chegue muito em breve”, diz em entrevista ao PÚBLICO. Sente-se tão bem que vai voltar em Maio à Ucrânia, onde durante 30 anos tratou doentes e ensinou médicos. “A principal razão para lá voltar é ver os meus amigos e levantar a sua moral. Quero dizer-lhes: ‘Vocês não estão esquecidos!’”

Henry Marsh diz estar a viver para o presente e a fazer aquilo que é hoje mais importante para si: ajudar os outros.

O seu livro é uma partilha da sua história como paciente, com reflexões sobre esse processo, e, em algumas partes, da história da sua vida como médico. Quando é que mudou de uma perspectiva de médico para a de paciente?

Não me surpreendeu propriamente o que era ser um paciente. O meu filho teve um tumor cerebral quando era muito novo e a minha mulher esteve gravemente doente por causa da doença de Crohn. Por isso, a partir deles, tive alguma experiência do que era ser um paciente.

No meu caso, o que mais me surpreendeu foi o quão surpreendido fiquei por ter cancro, o que é ridículo porque lidei profissionalmente com o cancro durante mais de 30 anos. Quando foi a minha vez, o que estatisticamente era muito provável, porque o cancro é uma doença relacionada com a idade, fiquei em choque.

Tinha sintomas de cancro há já muito tempo, mas estava muito relutante em passar para o outro lado. A relação entre médicos e doentes é muito desigual. Ser doente é uma experiência assustadora. Mesmo que se saiba isso como médico, tem de se continuar a tratar os doentes, sobretudo se se fizeram cirurgias perigosas [ao cérebro], como eu fazia. Tem de se ter uma relação distanciada com os doentes. Quando o meu diagnóstico foi feito, fiquei muito assustado. E, de repente, lembrei-me de muitos doentes que pensava que me tinha até esquecido e sentia que, por uma razão ou outra, tinha falhado com eles. Foi como estar rodeado por fantasmas. Não era como se esses fantasmas fossem acusadores ou estivessem zangados. Foi mais uma forma de olhar para trás na minha carreira e em algo que poderia ter sido melhor.

Foi um médico que foi consciente do distanciamento entre um médico e um doente, mas não deixou de pensar sempre nos seus doentes, porque tem até um livro sobre eles [o Não Faças mal — reflexões de um neurocirurgião sobre os erros, a culpa e o lado humano da medicina].

Penso que era um médico atencioso e muito dedicado. Sempre meti os meus doentes e o trabalho em primeiro lugar em vez da minha família. Mas, quando chegou a minha vez de ser o doente, fiquei surpreendido quão pouco confiante estava. Como médico, tem de se ter distanciamento e ver apenas uma parte do que o doente está a passar. Era um neurocirurgião, não era um psicoterapeuta. Pensava que tinha feito um bom equilíbrio quanto a isso, mas, quando me tornei doente, fiquei menos confiante de que isso teria acontecido.

No livro, conta que fazer uma ressonância magnética ao seu cérebro lhe parecia uma brincadeira. Porquê?

Pensava que estava bem. Fui médico e passei a vida a olhar para exames ao cérebro. Quando analisei o meu próprio exame, fiquei chocado. Mas era um exame ao cérebro a um homem de 70 anos! Estava em negação sobre o meu envelhecimento e sobre a inevitabilidade da morte. Queremos viver para sempre, mas, na verdade, a ideia de viver para sempre é uma má ideia. Para muitas pessoas, ser velho não é uma boa experiência. Ficamos ligados ao medo de morrer.

Ainda tem o exame do seu cérebro guardado?

Sim, claro! Nem gosto de olhar para ele...

Como me descreve esse exame?

Mostra o meu cérebro a encolher, o que é normal. Acontece a muitos de nós. Quando se envelhece, o cérebro vai ficando mais pequeno. No meu cérebro havia muitas áreas com danos na matéria branca, o que também é normal. Por volta dos 80 anos, quase toda a gente tem alterações destas. Depois, não se pode prever a partir de um

exame quais os danos no cérebro a nível psicológico e intelectual, até essas mudanças se tornarem mesmo graves. Na verdade, consigo pensar, escrever e falar. Até consigo correr e tenho 73 anos. Actualmente, o meu cancro está em remissão, mas pode voltar e matar-me. Com 73 anos, o que posso esperar? Ninguém vive para sempre.

Ao ler o livro, senti que quando teve o diagnóstico começou a questionar tudo a uma escala microscópica: desde o começo da vida até ao número de células que o ser humano tem. Começou a questionar quem somos. Por isso, pergunto: quem somos nós?

Como neurocirurgião, sei que, inevitavelmente, o que pensamos e sentimos é um processo físico. Noutras palavras, os cérebros obedecem a leis da física. Contudo, é interessante que as leis da física não nos digam praticamente nada sobre a consciência. Na verdade, as leis da física estão muito incompletas. Não acredito na vida depois da morte, mas acho que há uma enorme ignorância sobre a nossa própria consciência. Ainda nem começámos a entender bem os nossos cérebros.

É difícil responder quem são hoje os humanos?

Bem, penso que os nossos sentimentos nos foram atribuídos por anos e anos de evolução. A experiência, a educação e o meio envolvente são influências sobre a forma como sentimos e o que sentimos. Mas, em última instância, os nossos sentimentos foram-nos dados fisicamente pela evolução de um cérebro de mamífero ao longo de milhões de anos de evolução. Somos parte da natureza.

Reflexões deste género têm uma ligação com a sua educação em filosofia?

Sou alguém invulgar em Inglaterra. No início, estudei filosofia e política na Universidade de Oxford, mas depois tornei-me médico. Fiquei frustrado com a filosofia e desisti. Pensei que a filosofia poderia ser algo sobre o significado da vida, mas há 50 anos, em Oxford, era sobretudo uma análise linguística. Hoje é bem mais interessante, por explorar áreas como a metafísica e a ética.

Decidi precisamente estudar filosofia por causa destas questões sobre o significado da vida. Contudo, sou uma pessoa muito prática, sempre gostei de usar as mãos, e decidi ser médico. Ser neurocirurgião é ao mesmo tempo maravilhoso e terrível. Há muitos altos e baixos.

Quando soube que poderia ter pouco tempo de vida, fiquei assustado, mas ao mesmo tempo só pensava que tinha tido muita sorte na vida. Tinha 70 anos e tinha alcançado muitas coisas. Disse para mim: “Marsh, não tens o direito de reclamar.” Também pensava em todos os meus doentes e como muitos deles que tinham morrido com um cancro no cérebro. Tive centenas de doentes mais novos do que eu que morreram.

Ainda sobre política e o seu lugar no mundo, trabalhou durante alguns períodos na Ucrânia.

Ainda lá vou. Vou voltar daqui a umas semanas, no início de Maio. [Depois da guerra começar] já lá tinha estado em Outubro. Aliás, nos últimos 31 anos, ia lá todos os anos. Tudo começou porque a minha área de interesse quando estudava [política] na Universidade de Oxford era sobre aquela parte do mundo. Quando tive oportunidade, em 1992, fui à Ucrânia e percebi que era um país importante. Era como uma borboleta a tentar escapar da crisálida da fase da União Soviética. Quando voltei a Inglaterra dizia: “A Ucrânia é um país com muitos problemas e com muitas oportunidades.” E logo me perguntavam: “A Ucrânia é mesmo onde? Não faz parte da Rússia?” Agora, por causa da guerra, posso

Agora só quero fazer coisas e ajudar as pessoas. Honestamente, gosto de quem sou hoje

dizer que fui de certa forma visionário. Não esperava que a guerra começasse, mas sabia que a Ucrânia era um país importante, porque está entre o despotismo e autocracia da Rússia e as liberdades mais liberais da Europa ocidental.

Qual é hoje a sua ligação com a Ucrânia?

Tenho muitos amigos lá. Sou relativamente bem conhecido na Ucrânia, porque não foram muitos os europeus ocidentais interessados no país nos últimos 30 anos. Dou lá palestras e trabalho como médico, embora hoje já não faça cirurgias. Também dou opiniões a colegas. Agora, a principal razão para lá voltar é ver os meus amigos e levantar a sua moral. Quero dizer-lhes: “Vocês não estão esquecidos!”

A que parte da Ucrânia vai agora?

Vou a Lviv e Kiev. Talvez também a uma localidade chamada “Ivano-Frankivsk”.

Vê um fim nesta guerra?

Não... Leio tudo o que posso nas redes sociais e nos jornais, mas ninguém sabe o que acontecerá. Não penso que o mundo acabará numa guerra nuclear, mas é muito difícil saber como acabará [a guerra]. Aquilo que sabemos é que muitas mais pessoas serão mortas.

Agora vou fazer eu uma pergunta de médica: sente-se bem de saúde hoje?

Neste momento estou muito bem. Fiz terapia hormonal durante dois anos e radioterapia. Tive muitos efeitos secundários, como cansaço e perda muscular. Também me sentia muito deprimido. Agora sinto-me bem. Provavelmente, o cancro voltará, mas espero que não chegue muito em breve. Costumo correr todos os dias, e na última semana fui capaz de correr 18 quilómetros. Neste momento, sinto que estou a voltar atrás e a ficar cada vez mais novo a cada semana.

Já não se sente ansioso sobre o seu estado de saúde?

Neste momento, sinto-me bem. Estou a viver no presente. Sei que o futuro será mau, mas todos morreremos um dia. Agora sinto-me bem e até vou ter três palestras esta semana. Também vou a um evento de caridade para angariar fundos para um hospital pediátrico na Ucrânia. Estou muito ocupado. O cancro será agora algo que pertence ao futuro.

Mas a doença mudou-o de alguma forma ou é a mesma pessoa?

Claro! Deixei de me preocupar com o futuro. O futuro será mau, para quê preocupar-me com ele? A doença mudou-me. Toda a minha vida fui ansioso, competitivo e ambicioso. Agora só quero fazer coisas e ajudar as pessoas. Honestamente, gosto de quem sou hoje.

Como médico e doente, que conselhos dá a pessoas que tenham um diagnóstico semelhante ao que teve?

Depende de como a pessoa está fisicamente. Se a pessoa estiver a fazer quimioterapia e se sentir de rastos, a sua situação não será lá muito boa. Sou um sortudo, porque tenho 73 anos. Quando os doentes são mais novos, ficam desesperados porque querem viver bem mais, para verem os seus filhos a crescer e serem adultos independentes. Esse já não é um problema que tenha. Adoro os meus netos, mas sei que já não os vou ver a tornarem-se adultos. [Quanto aos conselhos, posso dizer que] a maior felicidade da vida é ajudar os outros e fazê-los felizes. Quando se está a chegar ao fim da vida, podemos sentir-nos bem se tivermos feito a diferença. Quando se está a morrer e chega o julgamento final, a única coisa que conta são as boas acções. O dinheiro e as posses não contam nada quando se chega ao fim da vida. Talvez devêssemos pensar nisto logo numa fase inicial da vida.

No livro, partilha que durante a pandemia, no primeiro confinamento, teve medo de morrer.

Toda a gente tinha. Ninguém sabia o que iria acontecer. Seria como a Peste Negra na Idade Média? Houve muita incerteza no início.

Hoje já não tem medo da morte? Tem os mesmos sentimentos?

Não. Com a vacinação, ficou óbvio que a covid-19 seria algo como a gripe. Todos os anos há pessoas a morrerem com gripe.

Conta-nos também que tinha medo de morrer porque queria terminar de construir uma casa de bonecas para a sua neta e não sabia se era capaz. Chegou a terminá-la?

Essa era a minha maior preocupação! Mas terminei-a e já estou a fazer outra para outra neta, que até é mais complicada de construir. Vai demorar dois anos.

O que tem hoje para terminar?

Vou dar uma palestra a um evento de angariação de fundos. Também tenho estado a fazer artigos em madeira para vender num leilão para angariar dinheiro. E daqui a dois dias vou dar outra palestra a estudantes de medicina. Todas as semanas dou umas duas ou três palestras. O meu jardim também está uma confusão e tenho de me dedicar a ele. Também estou sempre a ler livros. Estou sempre a fazer coisas. Esta é uma forma de me manter feliz e de lidar com a idade.

Os seus planos são sempre no presente?

Sim...

Dá-se conhecimento de que se encontra aberto os seguintes recrutamentos para a NOVA Medical School da Universidade Nova de Lisboa::

• 2 vagas: Assessor, Consultor, Auditor para o Serviço:

Controlo de Gestão Financeiro (Referência: ASS/1/CG/2023 e ASS/2/CG/2023);

o• 1 vaga de Especialista de Informática para o Serviço Académico (Referência: EI/1/SA/2023).

Podem candidatar-se os indivíduos que reúnam as condições fixadas no aviso disponível no endereço: www.nms.unl.pt (Junte-se à nms/ Recrutamento/Colaboradores)

O prazo limite para submissão das candidaturas é de 6 dias úteis a contar da data da publicação do presente anúncio.

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