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Israelitas vestem-se de servas para fazer ouvir as suas razões de protesto

Estão preocupadas com a perda de poder do Supremo, que tem “garantido os direitos das mulheres”. “Nunca vi tantas manifestantes ‘servas’, excepto na série Handmaid’s Tale!”, disse Atwood

Maria João Guimarães

Começaram por ser 20 mulheres vestidas como as servas criadas por Margaret Atwood, agora são milhares

Em cada manifestação contra as medidas propostas pelo Governo de Israel há grupos de mulheres vestidas como as servas de Handmaid’s Tale. O que começou com uma ideia no meio de muitas, levada a cabo por 20 mulheres, é agora de milhares, e em cada manifestação, entre as bandeiras de Israel sempre presentes, há também os vestidos vermelhos e toucas brancas.

“Inicialmente estávamos a ter dificuldades em fazer ouvir as nossas razões para protestar”, contou, num telefonema com o PÚBLICO, Hadas Ragolsky, porta-voz da organização Bonot Alternativa, que quer dizer algo como “construir uma alternativa”. As mudanças que a actual coligação do Governo querem implementar têm impacto em “tantos sectores da sociedade, da comunidade LGBT aos militares na reserva”, que as mulheres eram apenas um grupo entre muitos.

Num grupo “bastante frenético” no WhatsApp, o colectivo — formado há cerca de dois anos e meio na sequência da violação em grupo de uma rapariga de 16 anos em Eilat (Sul) — discutia alternativas para chamar a atenção até que, “já no final da discussão, surgiu esta ideia”. Tinham poucos dias até ao protesto seguinte, e duas voluntárias puseram-se em campo para conseguir fatos suficientes. “Uma foi a lojas de disfarces e trouxe capas de Drácula e de Capuchinho Vermelho, e outra, junto com a mãe e a tia, costurou as toucas”, conta Ragolsky.

E continua, meio a rir: “Não fazíamos bem ideia do que estávamos a fazer.” Até houve alguém a chamar a atenção para o facto de que deviam andar em pares (“eu não vi a série”), diz Ragolsky. “Fomos marchar no meio de 150 mil pessoas e nos 45 minutos que levou para irmos do tribunal ao Parlamento conseguimos que jornalistas de todos os meios de comunicação, locais e internacionais, que estavam a cobrir os protestos, nos fizessem perguntas”.

E de 20, o número de mulheres a aparecer assim vestidas passou para 450 em duas semanas e agora estará, estima, em 5000, em vários locais de Israel, e ainda fora, onde vá o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu — em Berlim, ou, na sexta-feira, em Londres.

O grande número de mulheres a aparecer com os fatos é impressionante porque, nota Ragolsky, “é duro andar assim; com a touca perde-se a percepção do que nos rodeia, e muitas mulheres só se manifestam assim uma vez”. Por lado, “permite o anonimato, tem havido mulheres religiosas a manifestarem-se porque vestidas assim não são reconhecidas”.

A capa e a touca têm sido usadas por mulheres a protestar contra perdas de direitos em vários locais do mundo, incluindo nos Estados Unidos. Mas a própria Margaret Atwood, que escreveu o livro que deu origem à série em que a imagem se popularizou, comentou as imagens de colunas de mulheres a marchar em Israel: “Nunca vi tantas manifestantes ‘servas’ a marchar assim, excepto na série Handmaid’s Tale!”

Ragolsky comenta, com a boa disposição que marca a conversa, apesar do tema: “Acho que levámos isto ao extremo! Mas acontecimentos extremos pedem respostas extremas.”

O que preocupa o grupo de mulheres é uma parte fundamental da reforma judicial (ou golpe, como têm preferido classificar os críticos da medida) que retira poder ao Supremo. Segundo a proposta em cima da mesa, o Supremo deixaria de poder revogar leis aprovadas pelo Parlamento.

“O Supremo tem sido, ao longo dos anos, uma garantia dos direitos das mulheres”, sublinha Ragolsky. “Foi o Supremo a permitir que

Hadas Ragolsky Porta-voz da Bonot Alternativa

as mulheres servissem no Exército, a defender as mulheres em questões de trabalho, a ter atenção a questões de representação.” Uma diminuição do poder do Supremo significa que desaparece “esse escudo de protecção dos direitos das mulheres”, afirma.

Religião e Estado

Ragolsky também salienta que o perigo é por esta acção, mas também por propostas que estavam prestes a entrar em vigor e foram suspensas. Uma delas é assinatura, por Israel, da Convenção de Istambul para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica. Outra foi, ainda na quinta-feira, a suspensão da entrada em vigor de uma medida que permitiria aos tribunais usar vigilância electrónica (“pulseira electrónica”) para monitorizar agressores contra quem tenha sido decretada uma proibição de se aproximarem das mulheres que agrediram ou ameaçaram.

A medida foi suspensa, segundo o ministro Bezalel Smotirch, de extrema-direita, porque seria preciso ter em conta “os direitos dos homens acusados injustamente”.

Tudo isto acontece num país em que as mulheres têm algumas condicionantes, uma delas é, por exemoutro

plo, o divórcio, que para ser conseguido precisa da concordância do marido. Como o casamento só é reconhecido através do sistema religioso, mesmo os casamentos no estrangeiro (usado por pessoas de religiões diferentes que não se querem converter) entram no sistema que define as regras do divórcio, o sistema religioso.

“Esse é um problema que antecede a reforma judicial, e que se manterá depois dela”, refere Ragolsky. “É mais uma das questões que surgem por não haver separação entre religião e Estado.” Neste momento, o foco da luta é a reforma judicial, sublinha – esse traz um perigo que não é imediato, mas cujos efeitos podem ser duradouros.

“Temos vindo a avisar para a tentativa de reduzir a nossa presença no domínio público, o pequeníssimo número de mulheres nos ministérios e no Parlamento – em cerca de 70 deputados da coligação, só dez são mulheres”, diz. “Não vamos esperar que nos digam quando podemos ir às compras ao supermercado, onde nos podemos sentar no autocarro, e quando podemos levar os nossos filhos ao médico”, disse Ragolsky em declarações ao diário hebraico Haaretz. “Não vamos esperar até que nos ponham lenços na cabeça.”

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2023-03-27T07:00:00.0000000Z

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