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Código mudou mas ainda há câmaras a empurrar as bicicletas para as bermas

Obrigação de pedalar o mais próximo possível da berma saiu do Código da Estrada em 2013. Vários regulamentos municipais de trânsito e de bicicletas partilhadas aprovados depois contradizem lei

Camilo Soldado

A lei diz o contrário, mas há vários regulamentos municipais a atirar a circulação das bicicletas para as bermas. Corrigir a situação é uma questão de segurança para quem pedala, para os peões, mas também para quem vai ao volante. É também um equívoco que reforça a ideia de que o carro é o dono das ruas.

Apesar de o Código da Estrada ter mudado em 2013 e de essa alteração estar em vigor desde 2014, há autarquias que incluem a obrigação de os velocípedes circularem “o mais próximo possível das bermas e dos passeios” nos seus regulamentos municipais de trânsito ou nos seus regulamentos de utilização de sistemas de bicicletas partilhadas. A formulação pode diferir entre municípios, mas a essência mantém-se.

No início deste mês, a Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta (MUBI) lançou o alerta: o regulamento de utilização de bicicletas partilhadas do município do Entroncamento, cujo lançamento a associação saudava, “apresenta erros grosseiros”. No número sete do artigo 4.º, a câmara estipulava que o “uso da bicicleta deve privilegiar a circulação pelas pistas cicláveis existentes no concelho, bem como a circulação o mais próximo possível das bermas e dos passeios, cumprindo as regras do Código da Estrada”.

Ora, com a alteração ao código, estipula-se que os velocípedes devem “transitar pelo lado direito da via de trânsito, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes”.

Acontece que o Entroncamento não é o único. Num levantamento do Diário da República feito pelo PÚBLICO, é possível constatar que há, pelo menos, mais sete câmaras municipais que aprovaram os seus regulamentos depois de 2014 em contradição com o Código da Estrada.

Acontece em Almeirim, na Figueira da Foz, mas também em Seia e Mortágua. Mesmo em municípios onde há grande tradição de utilização de bicicleta (ainda que os indicadores estejam a baixar), como Mira ou Ílhavo, o regulamento municipal de trânsito também comete o mesmo lapso. E municípios como Figueira da Foz e Almeirim fazem-no tanto no texto que regula o trânsito como no que orienta o uso das bicicletas partilhadas. Benavente, que publicou em Diário da República uma versão ainda de projecto, para consulta pública, também empurrava as bicicletas pela margem.

Uma questão de segurança

E porque é mais perigoso obrigar as bicicletas a circular junto à berma? A resposta dos dirigentes da MUBI e da Federação Portuguesa de Cicloturismo e de Utilizadores de Bicicletas (FPCUB), Mário Alves e Mário Meireles, toca praticamente nos mesmos pontos, a começar pela concentração de detritos na margem da faixa de rodagem que podem provocar rebentamento de pneus ou causar quedas. Há também mais tampas e bueiros, que podem ter o mesmo efeito.

Mário Meireles alerta também para o perigo de sair da zona de foco do campo visual do condutor que vem atrás, tornando o utilizador da bicicleta mais vulnerável a distracções.

Encostar-se, deixando uma maior parte da via mais disponível, é também um “convite às razias”. Ou seja, as ultrapassagens demasiado próximas, regista. Isso leva a que os automóveis incumpram duplamente o Código da Estrada: não mantêm a distância de 1,5 metros em relação ao utilizador de bicicleta e não passam para a faixa de rodagem adjacente ao fazer a manobra.

Por último, muitas vezes, regista Mário Alves, o trajecto dos peões é imprevisível, principalmente em ruas com mais pessoas a circular. Maior distância em relação ao passeio significa maior margem para evitar acidentes.

O PÚBLICO tentou obter esclarecimentos por parte das câmaras que mais recentemente introduziram a desconformidade nos seus regulamentos municipais (Almeirim, Benavente, Entroncamento e Figueira da Foz). Apenas Benavente, que está para lançar o seu sistema de bicicletas públicas partilhadas, respondeu, notando que a versão que foi publicada em Diário da República em Maio de 2022 era para consulta pública.

A autarquia entende que o regulamento não contradiz o Código da Estrada, uma vez que, depois de obrigar as bicicletas a circular “o mais próximo possível das bermas”, inclui a ressalva “cumprindo as regras do código”. Ainda assim, como o processo ainda não está fechado, refere o município, “será, com certeza, tornada ainda mais clara a letra da projectada norma regulamentar”.

Circular o mais próximo possível da berma levanta questões de segurança

Mudar a cultura

“Quando conhecemos um bocado o que se passa dentro dos municípios”, comenta Mário Meireles, “percebemos que há pouco investimento na formação dos técnicos”. Torna-se “compreensível que se esteja preso a uma ideia mais antiga”, diz. É uma ideia segundo a qual a bicicleta não deve atrapalhar o trânsito, em vez de olhar para este elemento da mobilidade como um utilizador vulnerável da estrada. “As coisas mudaram e há necessidade de formar, de reciclar conceitos”, considera. “Há uma questão cultural” que é preciso mudar”, nota Mário Alves. “As bicicletas não podem ser vistas como um empecilho e ainda o são por muita gente”, diz.

A aprovação destes regulamentos municipais não passa por qualquer outra entidade do Estado antes de entrar em vigor. Ao PÚBLICO, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária explica que estes diplomas não “pressupõem um procedimento de centralização de aprovação ou validação”. Assim, “qualquer desconformidade com a disposição referida será a ilegalidade da mesma”.

Em 2012, a ANSR lançou um Guia para Elaboração de Regulamentos Municipais de Trânsito para auxiliar as autarquias no desenho destes documentos. Não foi actualizado desde então e a autoridade não diz se o planeia fazer.

Salvaguardar a integridade física das pessoas mais vulneráveis, acrescenta Mário Meireles, é uma forma de ter mais pessoas a pedalar. A questão das bermas pode parecer de pouca importância, mas pode dissuadir utilizadores de bicicleta. “Se as pessoas circularem o mais à direita possível, rapidamente apanham dois ou três sustos na estrada e facilmente acabam por desistir”, exemplifica.

Nas bermas há detritos, tampas e bueiros que podem provocar rebentamento de pneus ou quedas

Lei Em Vigor Desde 2014 Não É Seguida Nos Regulame

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2023-03-27T07:00:00.0000000Z

2023-03-27T07:00:00.0000000Z

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