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Número de médicos estrangeiros bate recorde em Portugal

Há 4503 estrangeiros inscritos na Ordem dos Médicos. Médicos de países não comunitários têm de revalidar diploma

Alexandra Campos Texto Rui Gaudêncio Fotografia

Marcelo Sampaio é um psiquiatra brasileiro que exerce como especialista há poucos meses num hospital privado de Lisboa, depois de ter chegado a Portugal no início da pandemia de covid-19, em Março de 2020. “Sou um em cem. Tive muita sorte”, enfatiza o psiquiatra, que, antes de ver reconhecida a sua especialidade pela Ordem dos Médicos (OM) no ano passado, trabalhou como generalista “na linha da frente da covid-19” e fez de tudo um pouco em urgências de hospitais. “É o destino do médico estrangeiro”, lamenta.

Marcelo é um dos 4503 clínicos estrangeiros que estavam inscritos na Ordem dos Médicos no final do ano passado. É o maior número de sempre. Nos últimos anos, continuam a chegar a Portugal médicos de vários países da União Europeia, com Espanha e Itália à cabeça, mas são sobretudo os brasileiros que estão a contribuir para a escalada desta estatística. Basta ver que, entre 2018 e 2022, dos 844 estrangeiros que conseguiram obter a desejada cédula profissional, metade (420) eram brasileiros, o segundo grupo mais numeroso em Portugal, a seguir ao dos espanhóis, que têm reconhecimento automático ao abrigo da legislação comunitária.

Mas estes números podem ser enganadores. Há muitos médicos de países não comunitários, nomeadamente do Brasil, que tentam vir trabalhar para Portugal mas não conseguem. É difícil quantificar com rigor quantos serão porque o processo é árduo e demorado e uma parte significativa vai ficando pelo caminho, desde logo porque reprova nas sucessivas provas exigidas para o reconhecimento do seu diploma.

“Actualmente há uma corrida” de estrangeiros, sobretudo brasileiros, interessados em vir trabalhar para Portugal, mas as etapas que têm de percorrer fazem com que muitos acabem por desistir, principalmente os mais velhos, médicos com anos e anos de experiência e alguns com especialidades muito carenciadas no Serviço Nacional de Saúde português, como ortopedistas e oftalmologistas, explica Marcelo Sampaio. “Quando percebem que terão de ficar aqui a trabalhar em urgências como tarefeiros, muitos não vêm”. Se já é difícil revalidar o diploma, conseguir que a OM reconheça a especialidade é “quase impossível, é outro campeonato”.

Marcelo Sampaio está empenhado em criar uma associação de médicos brasileiros em Portugal

“Não vale a pena virem”

O psiquiatra, que cobra pela “consultoria” prestada a colegas interessados em emigrar para Portugal, confessa que até tem demovido desta aventura muitos conterrâneos mais jovens, por ser “mais fácil verem reconhecido o diploma noutros países”. “Digo-lhes: ‘Não vale a pena virem para cá.’ Para um recém-formado, Espanha é muito melhor.” Marcelo, que está agora empenhado em criar uma associação de médicos brasileiros em Portugal, escapou a este escrutínio porque revalidou o diploma ainda antes de se instalar cá, em 2017. “Sou de outro tempo, em que o tratado de amizade Portugal-Brasil ainda era respeitado.”

Lembrando que o processo de reconhecimento dos cursos não depende da OM, uma vez que está nas mãos das escolas médicas portuguesas, o ex-bastonário Miguel Guima

rães observa que é nesta fase inicial que reside “o grande problema, uma vez que a maior parte dos candidatos chumba”.

O escrutínio é, de facto, rigoroso. Os médicos começam a instrução do processo inscrevendo-se no site da Direcção-Geral do Ensino Superior e escolhem, entre as oito faculdades de Medicina, aquela em que pretendem revalidar o diploma, e onde um júri começa por analisar a carga horária do plano de estudos do seu curso e a semelhança com os cursos portugueses, e dá ou não luz verde para o processo prosseguir.

Seguem-se quatro provas de avaliação de conhecimentos linguísticos, académicos e clínicos. Para os que não são oriundos de um país de língua oficial portuguesa, há, primeiro, uma prova de comunicação básica de português. Depois, todos têm de passar numa prova escrita com 120 perguntas que versam sobre as principais áreas da medicina. Os dados dos dois últimos exames escritos facultados ao PÚBLICO pelo Conselho das Escolas Médicas Portuguesas (CEMP) permitem perceber que, de facto, uma parte substancial fica pelo caminho logo nesta etapa: na prova escrita de 2022, dos 520 médicos que compareceram, só cerca de um terço (183) conseguiu passar; na última, em Janeiro deste ano, foram aprovados pouco mais de metade (322) dos 593 candidatos.

Após este exame, têm de se submeter a uma nova prova, esta prática e clínica, em que avaliam um doente e elaboram um relatório. Por fim, apresentam um trabalho de mestrado ou equivalente, como uma dissertação ou uma monografia. Não foi possível apurar a taxa de aprovação nestas duas etapas, tendo o CEMP indicado apenas que o exame escrito se tem revelado a “mais crítica”.

Todo este crivo não é demasiado apertado? “Os crivos em medicina são sempre muito apertados”, responde a presidente do CEMP, Helena Canhão, frisando que o padrão de exigência é semelhante ao que é imposto aos médicos portugueses. “Os portugueses, depois de terminarem o curso, fazem um ano de internato. Depois, fazem um exame para entrar na especialidade, que é difícil. E todos os anos têm exames e são avaliados. A vida de médico é assim, estamos a tratar da vida das outras pessoas, e errar em medicina é algo muito grave”, justifica.

Para alguns médicos venezuelanos em Portugal, passar esta primeira barreira tem-se revelado muito com

Sociedade Muitos Ficam Pelo Caminho E Não Consegue

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2023-03-27T07:00:00.0000000Z

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