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O Estado, os bancos e o mercado

Ricardo Arroja Economista. Escreve quinzenalmente às segundas-feiras

Os eventos das últimas semanas no sector financeiro trouxeram a lume as vulnerabilidades do sistema de reservas fraccionárias

Antigamente, costumava-se dizer que, quando alguém devia um milhão ao banco, o problema deixava de ser desse alguém e passava a ser do próprio banco. A história já não se conta medida em milhões de unidades monetárias. Agora é mesmo em milhares de milhões. A história dos bancos está repleta de casos destes. Casos em que os bancos se expuseram excessivamente a devedores problemáticos, pelos quais pagaram as consequências. Em algumas situações indo à falência, noutras expondo os seus próprios credores às consequências, noutras ainda passando a conta a outros terceiros.

Foi neste contexto que surgiu a regulação bancária, a partir da criação da Reserva Federal no início do século XX e, em particular, a partir do momento, nos anos 30, em que, também na América, foi criado o primeiro fundo de garantia de depósitos. A regulação foi uma moeda de troca entre o Estado e a banca – regulação em troca de protecção –, mediante a qual o Estado institucionalizou a chamada “banca de reservas fraccionárias”.

Muita coisa mudou desde a criação da Reserva Federal e do Federal Deposit Insurance Company, porém, uma coisa permanece inalterada: a natureza inerentemente instável do sistema de reservas fraccionárias. Para início de conversa há que entender o modelo de negócio da banca. Consideremos um banco comercial – aquele que recebe depósitos de particulares. Neste banco, o modelo de negócio começa com a definição do montante de recursos financeiros a captar junto de depositantes. Num banco comercial, este montante costuma ser significativo, sendo que a taxa de juro a pagar aos depositantes pelos depósitos, a chamada” taxa de juro passiva”, contribui decisivamente para a rentabilidade do banco.

Não é, pois, por acaso que as taxas de juro pagas aos depositantes teimam em não acompanhar a taxa de juro do Banco Central Europeu (BCE). Como acontece em qualquer empresa, financeira ou não financeira, os bancos financiam-se, em primeiro lugar, junto dos seus accionistas. Mas, ao contrário das empresas não financeiras, os bancos financiam-se também junto dos seus depositantes e de outras instituições

Infelizmente, tende-se a confundir regulação com regulamentação, insistindo-se mais na segunda do que na primeira

financeiras (incluindo o banco central enquanto financiador de último recurso).

A base do sistema de reservas fraccionárias encontra-se na base de depósitos captados, que constituem responsabilidade (isto é, passivo) dos bancos. É a estes que cabe a devolução do capital quando solicitado pelos depositantes. Aconselha-se, assim, prudência na transformação dos depósitos em operações de crédito, ou na utilização dos depósitos para aquisição de activos financeiros. Uma e outra constituem objecto social dos bancos, através das quais é concretizada a função económica da banca.

Mas esta função é posta em causa sempre que um banco, uma vez solicitado pelos seus depositantes, se vê incapaz de reembolsar os depositantes na ausência de liquidez disponível para o efeito. Nessas circunstâncias, ou o banco refinancia os depósitos, captando novos depositantes para satisfazer os antigos, ou liberta operações de crédito para gerar liquidez, ou simplesmente vende outros activos que detém no seu balanço.

Os eventos das últimas semanas no sector financeiro trouxeram a lume as vulnerabilidades do sistema de reservas fraccionárias. Sendo certo que os casos do Silicon Valley Bank (SVB) e do Credit Suisse (CS) tiveram desfechos relativamente rápidos, produziram também preocupações que perdurarão durante algum tempo. Que preocupações/reflexões são essas? Em primeiro lugar, que na ausência de reservas mínimas obrigatórias — a parte (isto é, a fracção) da base de depósitos que tem de ser guardada junto do banco central, para prevenir crises de liquidez espoletadas por corridas aos depósitos —, os rácios de capital poderão ser insuficientes, mesmo quando são elevados.

Em segundo lugar, que as regras contabilísticas aplicáveis à banca poderão revelar-se aceleradoras das crises, em vez de dissuasoras, sempre que uma corrida aos depósitos conduz à reclassificação de activos. E em terceiro lugar, que os reguladores devem constituir fonte de estabilidade para o mercado, em vez de instigarem a instabilidade no mesmo.

Nas últimas décadas, os requisitos de reservas mínimas obrigatórias baixaram dramaticamente um pouco por todo o mundo. Hoje, na zona euro, o Banco Central Europeu define esse requisito entre zero e 1% dependendo do tipo de depósito em causa. Já nos Estados Unidos, o requisito é mesmo nulo, depois de ter sido eliminado pela Reserva Federal durante a pandemia; antes da pandemia estava entre 3% e 10%.

A redução destes requisitos, acabando na sua eliminação, produz incentivos regulatórios muitos evidentes: transformar mais depósitos em empréstimos, aumentando o risco de selecção adversa dos devedores, ou, alternativamente, “financeirizar” os depósitos (desde logo, incentivando os bancos privados a financiar o

Estado, o dono da regulação, através da aquisição de títulos de dívida pública aos quais é atribuído risco-nulo para efeito de rácios de capital; a dita “financeirização” da banca beneficia em primeiro lugar o Estado e não a “especulação privada” como às vezes é erroneamente dito). O propósito do regulador é estimular o crédito à economia (e ao Estado!), mas o risco é tornar o sector financeiro mais instável e susceptível às corridas aos depósitos.

A falha de governo não se esgota na eliminação das reservas bancárias. Ela estende-se também à falta de regulação das regras contabilísticas vigentes na banca e, sobretudo, à incerteza gerada pela acção dos próprios reguladores. No caso do SVB, o colapso do banco foi causado, não pela premência de crédito malparado, mas sim pela reclassificação de activos, mormente títulos de dívida pública norte-americana que tiveram de ser reavaliados ao valor de mercado, a partir do momento em que a corrida aos depósitos determinou a necessidade de vender títulos.

Se todos os títulos passíveis de uma avaliação de mercado estivessem assim avaliados, o problema do SVB teria sido evitado antes mesmo de acontecer. Não teria ocorrido porque o mercado não teria permitido. De igual modo, também no caso CS foi o mercado que acabou por forçar a sua capitulação. Na verdade, os reguladores (suíços) não conseguiram melhor do que criar um imbróglio adicional, ao terem cancelado títulos de “quase-capital” (na forma de instrumentos de capital contingente), salvaguardando detentores de acções comuns e quebrando a normal hierarquia de credores. Os tribunais terão agora com que se entreter durante muitos anos.

É demagógica a crítica apontada ao mercado, quando falamos das dores do sector bancário. Na realidade, a banca está entre os sectores mais regulados da sociedade, e é uma das actividades económicas onde a regulamentação estatal mais se faz sentir. Infelizmente, tende-se a confundir regulação com regulamentação, insistindo-se mais na segunda do que na primeira, apesar de a saúde do sector financeiro passar mais pela primeira do que pela segunda.

A responsabilização pelos problemas na banca, sem prejuízo das responsabilidades individuais de quem se esquece de levar a cabo uma gestão sã e prudente das instituições, deveria ser primeiramente dirigida ao Estado, em particular aos reguladores que actuam no âmbito de um mandato estatal. E deveria levar, primeiro, à reflexão sobre os fundamentos da actividade em vez de minudências técnicas. Afinal, de que serve uma abordagem extraordinariamente prescritiva, se os incentivos regulatórios de base são contraproducentes? E de que serve a propensão burocrática, se é com mais transparência de mercado, e não com menos, que se faz forte o sector financeiro...?

Espaço Público

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2023-03-27T07:00:00.0000000Z

2023-03-27T07:00:00.0000000Z

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