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Quem usa apropria-se? Ideais controversas sobre apropriação cultural

João Ferreira Dias

Aapropriação cultural constitui um dos campos de disputa pós-material do mundo contemporâneo, que mobiliza questões de identidade e cultura, sem considerar, na maioria das vezes, o primado elementar da cultura: o hibridismo.

Na sua génese, a noção de apropriação cultural compreende a utilização de elementos culturais — símbolos, roupas, penteados, culinária, religião —, de uma minoria étnica ou cultural por parte da cultura dominante. A esta utilização está associada a ideia de desrespeito pela cultura de origem e, automaticamente, uma noção de posse cultural sobre elementos. Devido à politização da cultura, o assunto torna-se sensível e demanda por uma avaliação prudente.

A premissa da apropriação acarreta, desde logo, dois problemas: (i) de que existem culturas autênticas, (ii) de que o uso de elementos das minorias por parte do grupo dominante é por natureza uma violação e um sintoma de opressão. Vamos por partes.

De modo sistemático, podemos definir hibridismo cultural como um processo dinâmico e continuado, de fertilização de culturas e ressimbolização que preserva a memória dos objetos e em que os elementos díspares geram novos objetos culturais, a que não é alheio o potencial gerador de perda de tradições. Porém, o processo de encontro de culturas, raras vezes pacífico, integra a história da humanidade. Com efeito, o imaginário católico das santas e santos, dos ex-votos e romarias, é, em grande medida, devedor da religião civil romana e das práticas religiosas celtas. Serve isto para dizer que não existem culturas autênticas, em estado puro (ideia que mobilizou os primeiros estudos afro-americanos de autores como Roger Bastide), livres do contacto com outros elementos culturais. Significa, então, que a inautenticidade é uma marca de todas as culturas, e que a assunção de pureza é um sintoma político sobre a memória coletiva e a identidade do grupo. Ou seja, a autenticidade reclamada é uma construção social, para fazer uso de um termo das ciências sociais.

O segundo problema enumerado era, recorde-se, o de que o uso de elementos das minorias por parte do grupo dominante é por natureza uma violação e um sintoma de opressão. Esta leitura resulta do avanço crescente das teses da Teoria Crítica, de inspiração gramsciana (mas não apenas), de luta permanente pela libertação dos oprimidos. Quando absolutizada, padece de um vício terrível, que é o da culpa absoluta, estanque e insuperável do mundo ocidental como opressor.

Este aspeto não é irrelevante, dado que não se utiliza o termo apropriação cultural quando em sentido inverso um grupo minoritário utiliza (e eventualmente ressignifica) elementos culturais do grupo dominante. McWhorter, no seu recente livro, Woke Racism, menciona o paradoxo de que as pessoas brancas devem valorizar, respeitar e exaltar os elementos culturais

A premissa da apropriação acarreta, desde logo, dois problemas: a ideia de que há culturas autênticas; e de que o uso de elementos das minorias pelo grupo dominante é por natureza violação e opressão

das minorias, mas não lhes devem tocar. Reivindica-se, portanto, uma adoração religiosa similar à dos altares, onde objetos são depositados para devoção, mas aos quais não se deve tocar por preservação da sua sacralidade.

Sucede que uma pessoa branca pode (do ponto de vista legal não tem impedimento) fazer uso de elementos culturais alheios, dando-lhes uma nova roupagem artística, como na música, ou uma desconstrução gastronómica, ou simplesmente atribuindo valor estético ao elemento cultural, sem que com isso se verifique uma violação cultural. A única fundamentação que nos é dada para que uma pessoa negra possa usar um fato italiano ou um kilt escocês, mas um branco não possa usar o que se chama comummente rastas ou dreadlocks (penteado que diversos povos não africanos igualmente usam e usaram ao longo da história, sob diversos nomes) é a da opressão, traduzida então na ideia de apropriação cultural que desrespeita e desvaloriza a cultura de origem.

Apesar de tudo, é preciso salientar que o assunto não é linear. Com efeito, a apropriação cultural como um fenómeno de violência simbólica pode e tem lugar. Exemplo disso seria um movimento supremacista branco cuja simbologia fosse o penteado de rastas. Ou em termos mais comuns, ela ocorre quando membros da cultura dominante se apropriam transitoriamente de elementos culturais das minorias para efeitos comerciais, quando correntes espirituais ocidentais Nova Era se apropriam de elementos religiosos não cristãos, dando-lhes uma nova simbologia que desrespeita a cultura de origem, ou, por exemplo, quando a indústria dos super-heróis viola a identidade religiosa de uma divindade, como acontece com Thor.

Concluindo, decorre uma necessária distinção entre (a) a ideia puritana e politizada de posse cultural, que determina que uma cultura e os seus elementos são propriedade de determinados grupos, o que viola a natureza híbrida de todas as culturas, e que somente esses grupos possuem autoridade para fazerem uso dos mesmos ou para permitirem, sob consulta e manifesta autorização, uso dos mesmos, e (b) a efetiva apropriação cultural como um uso abusivo de elementos culturais para fins contrários ou suficientemente distintos da sua utilização na origem ao ponto de violarem a dignidade cultural dos objetos e elementos culturais.

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2023-03-27T07:00:00.0000000Z

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