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Cucha Carvalheiro regressa ao Portugal de 1962, ano de viragem

Encenadora, actriz e autora de Fonte da Raiva apresenta no São Luiz uma peça para lembrar os silenciamentos em que se vivia

Gonçalo Frota

Cucha Carvalheiro integrou, em 1996, o elenco de Danças a Um Deus Pagão (Dancing at Lughnasa, no original) que Rosamaria Rinaldi encenou para a Escola de Mulheres. Na peça, o dramaturgo irlandês Brian Friel servia-se de uma pequena localidade interior, remota e fictícia, Ballybeg, para a reboque de uma história familiar retratar a complexa, contraditória e social realidade da Irlanda do Norte.

Encarando o público, ignorando a quarta parede, o narrador da peça de Friel era o filho de uma das cinco irmãs de onde emergiam todas as ramificações de uma trama passada em 1936 na região de Ulster. Cucha Carvalheiro fora uma das cinco irmãs em cena e, com a passagem dos anos, a sua ligação emocional ao texto levou-a a imaginar-se num outro lugar, transformando-se na narradora que aproveitaria aquele núcleo familiar para contar uma outra narrativa: a de Portugal em 1962, baseando-se na estrutura e na escrita de Friel, mas reescrevendo para esse período em que eclodiu a Crise Académica que desafiou e fez estremecer a ditadura salazarista, logo após o início das operações militares que tentavam deter os movimentos revolucionários independentistas das então colónias portuguesas.

Fonte da Raiva, no Teatro São Luiz, Lisboa, de hoje a 12 de Fevereiro, serve-se assim das memórias da encenadora, actriz e autora da adaptação do texto, cuja infância foi passada entre Portugal e Angola. “A minha ideia foi basear-me na estrutura da peça e naquelas personagens [de Brian Friel], para não me perder”, explica ao PÚBLICO, “porque era a primeira vez que me abalançava a fazer algo desta dimensão. E quis misturar isso com as minhas memórias, nascida em Lisboa e levada para Angola com meses. Depois voltei com três anos e passava férias em casa da minha avó paterna, numa das aldeias mais pobres de Portugal. Vivi ainda em Angola entre os seis e os nove anos. E quis fixar a peça em 1962 porque acho que foi um momento de viragem para a minha geração”.

As recordações de Cucha Carvalheiro infiltram-se logo nos primeiros minutos, quando a partir do relato de um encontro entre duas mulheres no café Martinho da Arcada (que, de facto, presenciou e aqui verteu para a ficção), a máquina da memória da sua personagem começa a carburar e a devolvê-la ao tempo da sua infância.

O dispositivo é este: Amélia (Carvaregressado lheiro), filha de mãe branca e pai negro, revisita a casa onde nasceu e cresceu, na aldeia de Fonte da Raiva, numa altura em que era ainda criança e era educada pela mãe ( Júlia Valente) e pelas quatro tias (Inês Rosado, Joana Campelo, Leonor Buescu e Sandra Faleiro). E providenciando o contexto, retira-se para que observemos não apenas a dinâmica entre as irmãs, mas também as suas vidas ocupadas com a urgência e a pressão para o casamento, os ouvidos colados à telefonia para escutar as mensagens dos soldados enviados para África no programa Hora da Saudade, o acolhimento do padre missionário (Luís Gaspar) de Angola alegadamente devido à malária (na verdade, era apoiante do movimento independentista) e as visitas do pai de Amélia (Bruno Huca), um poeta pouco politizado que se verá mobilizado para a frente de combate.

Toda a peça acaba por ser atravessada pelo confronto das cinco irmãs — que pedem à mais velha tabaco ou a Poesia Erótica-Satírica quando vai às compras — com o conservadorismo do meio que as rodeia. A gravidez fora do casamento da mãe de Amélia, a homossexualidade de uma das tias, o respeito pelo luto em memória da mãe das cinco (falecida há um ano e razão pela qual não frequentam os bailes da terra), tudo motivos para viverem numa bolha que as proteja da má-língua e do julgamento exterior. “É também um pouco a imagem que tenho do Portugal salazarento, em que as pessoas se espiavam umas às outras e havia muitos informadores da PIDE”, recorda a encenadora.

Ao adaptar a peça de Friel para esse universo português da década de 1960, Carvalheiro optou por sublinhar mais o peso feminino inscrito no original, mas optou também por complexificar algumas das personagens. O missionário da família, regressado neste caso de Angola, não o faz apenas por se ter “paganizado”, mas também pelas posições políticas que adoptou em África; Amélia é filha de um amor inter-racial; e uma das tias é lésbica. Tudo situações de silenciamento e de discriminação social que Carvalheiro acrescenta à escrita de inspiração autobiográfica de Friel.

Esta Fonte da Raiva, para Cucha Carvalheiro, é também uma “história que gostava de partilhar com os sobrinhos-netos”. Ou seja, com uma geração que olha para este retrato, de guerra, do exílio forçado e do mundo sorvido em silêncio ao ritmo da telefonia, como uma realidade distante. E é no passado que a encenadora, assustada pela ascensão da extremadireita por todo o mundo, gostaria que o passado ficasse. As memórias são suficientes.

Cultura

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2023-02-01T08:00:00.0000000Z

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