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Ministério da Cultura aponta revisão do Estatuto “para o segundo trimestre”

Estruturas alertam que a lei “está a ser uma ferramenta de assédio laboral”. Falam em “desinformação”, “caos” e “perguntas-chave sem resposta”

Mariana Duarte

Após a segunda reunião da Comissão de Acompanhamento do Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura, que decorreu na passada sexta-feira, o desapontamento crescente e generalizado do sector perante este novo regime contributivo e de enquadramento fiscal das actividades dos profissionais do sector à Autoridade Tributária e foi ainda mais a fundo. Num comunicado divulgado no domingo, a Associação de Artistas Visuais em Portugal (AAVP) classificou a reunião como “kafkiana” e “grave”.

“É vergonhoso que depois de terem sido criadas as condições de trabalho para o Mapeamento dos Trabalhadores da Área da Cultura e para a colaboração na criação de um novo estatuto, este continue sem aferição e esteja a ser forçada uma legislação que não atende às necessidades. É grave que esta esteja a gerar mais incerteza e insegurança”, lê-se no comunicado.

Para a AAVP, se o Estatuto não for alterado, então “é preferível que seja abortado, com risco de vir a gerar mais danos e a acentuar a precariedade”. A Plateia e o Cena-STE — Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, outras duas estruturas representativas do sector, não vão tão longe. Mas sublinham a urgência de se rever a lei, que se destina a trabalhadores a recibo verde e aos contratos de muita curta duração, com o fim de conferir uma maior protecção social, combater a precariedade e os falsos recibos verdes. A hipótese de revisão está, de resto, prevista no próprio decreto-lei. “Há muito que temos propostas concretas para a revisão, o que não implica suspender o Estatuto”, diz Amarílis Felizes, dirigente da Plateia. “Há muita desinformação e muitas lacunas, e não tem havido respostas .”

“Abortar não será o caminho, até porque algumas profissões estão a ser protegidas pelo Estatuto — todas as outras, a maioria, continuam a ser empurradas para a precariedade”, afirma Rui Galveias, da direcção do Cena-STE. “Sempre avisámos que esta lei, como está, não era uma solução, mas um problema.”

Ao PÚBLICO, o Ministério da Cultura (MC) avança que “no segundo trimestre deste ano”, quando dispuserem “de indicadores consolidados sobre o funcionamento do Estatuto na dimensão de protecção social”, será iniciada “a auscultação das entidades representativas do sector com vista à futura revisão”.

“Achamos bem o ministro da Cultura [Pedro Adão e Silva] querer discutir, finalmente, este assunto”, comenta Amarílis Felizes, reiterando a disponibilidade da Plateia para apontar caminhos para tornar o Estatuto “útil e vantajoso”.

Assédio laboral

Desde a entrada em vigor do Estatuto, a 1 de Janeiro de 2022, que as dúvidas, as incertezas e as críticas não estancam, e têm ganho tracção desde Outubro, mês em que as novas taxas contributivas deste regime começaram a ser efectivamente aplicadas, tanto às entidades empregadoras como aos trabalhadores – para os profissionais, a adesão é voluntária, mas todas as entidades que contratam e empregam no sector da

Cultura são obrigadas a cumprir a lei, independentemente de o trabalhador estar ou não registado, o que passa por pagar uma taxa de 5,1% à Segurança Social (SS). Do lado dos trabalhadores, a taxa contributiva de quem optar por aderir passa de 21,4% para 25,2% sobre 70% do valor de cada recibo.

“Já dissemos várias vezes que as taxas são muito exigentes para a protecção social que se oferece e que são desadequadas à realidade do sector, cada vez mais empobrecido”, aponta Rui Galveias. A conversa, nota, vai sempre parar ao mesmo sítio: à “suborçamentação” da Cultura. “O Estatuto só funciona se houver um reforço financeiro. Só assim é que as entidades do sector público conseguem pagar os custos extras. Senão, ou reduzimos as equipas ou reduzimos os projectos. Vamos ter um país onde vai ser tudo monólogos ou filmes feitos no quarto?”

O dirigente do Cena-STE revela que no sector empresarial da publicidade e do audiovisual o Estatuto “está a ser uma ferramenta de assédio laboral e

As taxas são muito exigentes para a protecção social que se oferece e são desadequadas à realidade do sector, cada vez mais empobrecido

Rui Galveias Cena-STE

um bloqueador de relações”. Há empresas a pedir aos trabalhadores para passar o recibo com o código de outros prestadores de serviços em vez do código associado à profissão, de modo a não pagarem a nova taxa contributiva. “E ameaçam o trabalhador se não o fizer.”

Duplas contribuições

A juntar à insegurança, os trabalhadores estão “cada vez mais confusos e baralhados”, assinalam os responsáveis do Cena-STE e da Plateia. “A SS não consegue ainda responder a uma série de perguntas e pedidos de informação por parte dos trabalhadores; o cruzamento entre a IGAC [Inspecção-Geral das Actividades Culturais], a SS e a Autoridade Tributária está a ser o caos; os sites não estão a funcionar como deviam… Por isso, o cenário é kafkiano”, diz Rui Galveias.

Amarílis Felizes refere que há “perguntas-chave” que a Plateia dirigiu à IGAC e que estão há muito sem resposta. Uma delas diz respeito ao facto de a SS estar a cobrar duplamente

contribuições referentes ao mês de Outubro aos profissionais que passam recibos verdes e que aderiram ao novo regime de protecção social associado ao Estatuto. “Conforme previsto, estas pessoas viram as suas contribuições à SS retidas em cada recibo que passaram em Outubro, mas estão também a ser notificadas para pagarem o que seriam as contribuições relativas a este mês que decorrem do sistema de declaração trimestral. Naturalmente, não é possível que um trabalhador tenha de pagar duas vezes contribuições para a SS relativas a um mesmo mês”, explica Amarílis. Esta situação ainda não foi resolvida. “Não há informação e há pessoas sem dinheiro.”

Outra das questões é relativa a profissionais da Cultura, inscritos no Estatuto, que são simultaneamente trabalhadores por conta de outrem e trabalhadores independentes e que, desde o dia 12 de Janeiro, “têm sido confrontados com uma mensagem nos seus emails a remetê-los para as suas caixas de mensagens da Segurança Social Directa”.

25,2 Taxa contributiva de quem optar por aderir passou de 21,4% para 25,2% sobre 70% do valor de cada recibo

“Sem ter havido aviso prévio, verificam que se encontram em dívida, que não é especificada, e já com cobrança de juros para os meses de Outubro e Novembro e sem juros para o mês de Dezembro”, descreve a Plateia. “Apesar de as regras do Estatuto determinarem que as habituais isenções de contribuições para a SS não se aplicam a quem esteja inscrito, por conta da falta de informação clara sobre este aspecto muitos destes trabalhadores foram apanhados de surpresa com a obrigatoriedade das contribuições.” A associação diz ser “abusiva a cobrança de juros de mora nesta situação”, pedindo a sua “urgente reconsideração”.

Estas e outras situações foram expostas na reunião da Comissão de Acompanhamento, em que não esteve presente Pedro Adão e Silva, nem nenhum membro do seu gabinete, tal como na primeira. Apesar de o despacho pelo qual foi criada a comissão não prever a obrigação da presença do ministro nestas reuniões presididas pela IGAC (“Não percebemos isso no início”, assinala Rui Galveias), as estruturas consideram que esta seria essencial. “Nunca ninguém imaginou que o próprio Governo se iria demitir das suas responsabilidades, que é o que está a acontecer quando o ministro não vai às reuniões”, afirma o dirigente do Cena-STE.

Inscritos diminuíram

“O ministro da Cultura está — como tem estado sempre — disponível para ouvir todos os representantes do sector no âmbito de uma discussão política, tanto sobre o Estatuto na sua forma actual, como sobre as modificações que ele possa eventualmente vir a sofrer”, responde o MC, sublinhando que a comissão é uma entidade “de cariz técnico, e não um fórum de discussão política”.

De acordo com o MC, neste momento há 2157 trabalhadores registados no Estatuto, num universo de 187,7 mil profissionais da Cultura, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística referentes a 2021. No início de Outubro, havia 2363 inscritos – um decréscimo que reflecte as crescentes dúvidas e incertezas face a este regime.

O MC admite que é um número “que está muito aquém das expectativas com base nas quais este mecanismo foi criado”, desde logo a estruturação e identificação estatística do sector para melhor se definir políticas públicas. “Ainda assim, é preciso ter em conta que uma parte significativa do Estatuto, nomeadamente a que regula as diversas modalidades de prestação de actividade cultural, se aplica a todo o trabalho nesta área, independentemente de o profissional estar ou não registado”, assinala o MC. “Esta componente do Estatuto representou um avanço significativo face ao enquadramento jurídico anterior.”

Cultura Estatuto Dos Profissionais Da Área Da Cult

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2023-02-01T08:00:00.0000000Z

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