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Neurociências, inteligência artificial e filosofia do cinema valem bolsas a Portugal

Cientistas foram distinguidos com quase dois milhões de euros. Pela primeira vez, o Conselho Europeu de Investigação atribuiu uma bolsa à filosofia do cinema e veio para Portugal

Teresa Serafim

Eugenia Chiappe, André Martins e Susana Viegas são os investigadores em Portugal que recebem uma bolsa de consolidação do Conselho Europeu de Investigação (ERC, na sigla em inglês), anunciou ontem o organismo europeu. Os cientistas da Fundação Champalimaud, do Instituto Superior Técnico e da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, respectivamente, vão receber quase dois milhões de euros (cada um) pelos seus projectos.

Na edição das bolsas de consolidação do ERC agora anunciadas, são 321 os investigadores na Europa incluídos neste financiamento. Ao todo serão distribuídos 657 milhões de euros e cada cientista receberá cerca de dois milhões de euros. Atribuídas pelo programa de financiamento europeu Horizonte Europa, estas bolsas distinguem investigadores a meio da carreira, que tenham entre sete e 12 anos de experiência após o doutoramento.

Os países com o maior número de bolsas são a Alemanha (com 62 projectos distinguidos), França (com 41) e Espanha (24). Entre as nacionalidades com mais cientistas distinguidos está a Alemanha (com 52), Itália (32), França (31) e o Reino Unido (31). Esta edição teve 2222 candidaturas. Entre essas foi então atribuído financiamento a 321 projectos.

Estes são os projectos distinguidos em Portugal.

Neurociências: Eugenia Chiappe

Eugenia Chiappe vai ter quase dois milhões de euros para perceber como o cérebro da mosca-da-fruta calcula e corrige os erros de trajectória, explica a Fundação Champalimaud, em Lisboa, em comunicado.

A investigadora principal do Laboratório de Integração Sensório-Motora da Fundação Champalimaud tem vindo a fazer experiências para entender o que acontece no cérebro da mosca-da-fruta, quando esta tenta caminhar em linha recta. E já obteve resultados preliminares que sugerem que o cérebro deste insecto sabe que o seu corpo se está a desviar e tem a capacidade de estimar esse erro. Afinal, se passarmos esta questão para os humanos, sabemos que, quando tentamos caminhar em linha recta com olhos fechados, depois de alguns passos, o corpo desvia-se da trajectória pretendida e o cérebro sabe disso.

Mas de onde vem a capacidade de se estimar esse desvio? Responder a essa questão será o objectivo de Eugenia Chiappe. A investigadora quer compreender a nível neuronal de onde vem essa capacidade na moscada-fruta. Também se quer entender como o insecto decide corrigir esse desvio e vira o corpo de uma certa forma através da estimativa de erro no seu cérebro. Para tudo isso, a sua equipa vai fazer experiências em que colocará as moscas num ambiente de realidade virtual em que se podem deslocar livremente.

“Sabemos muito pouco sobre a forma como os organismos integram a informação proprioceptiva (a propriocepção é a percepção da posição das diversas partes do corpo), a informação visual e a informação vinda de outros sinais internos que têm que ver com a locomoção”, afirma a investigadora no comunicado. O seu trabalho pode vir a dar contributos ao nível das bases neuronais das perturbações motoras humanas e do desenvolvimento de robôs capazes de se movimentar em ambientes mais inesperados.

Eugenia Chiappe tinha já conquistado uma bolsa de início de carreira

do ERC em 2017 para compreender como o circuito neuronal integra os estímulos e criar assim uma representação interna dos movimentos associados ao andar também na moscada-fruta. Na altura, obteve 1,7 milhões de euros para esse trabalho.

Inteligência artificial: André Martins

André Martins também terá quase dois milhões de euros para apresentar soluções para problemas essenciais do processamento de linguagem natural. Para isso, recorrerá a uma metodologia interdisciplinar que combina ferramentas de inteligência artificial, modelação esparsa, neurociências e ciências cognitivas.

Um dos pontos de partida do investigador do Instituto de Telecomunicações e do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, foi o facto de os modelos existentes de aprendizagem profunda para o processamento de linguagem natural terem até um bom desempenho, mas serem ainda pouco fiáveis – por exemplo, não conseguem tirar partido de informação de contexto.

Através do novo financiamento, explica-se num comunicado sobre a bolsa, André Martins vai aplicar um princípio orientador para gerar de forma controlada texto com base em estimativas de incerteza e qualidade. Depois, desenvolverá modelos de memória esparsos e estruturados com representações descritivas de mecanismos de atenção. Por fim, desenvolverá modelos matemáticos para comunicação esparsa, formando um espaço compartilhado onde módulos e agentes podem comunicar entre si.

Para o cientista, este projecto permitirá “avançar mais um passo no grau de problemas a resolver, colmatando as limitações dos actuais sistemas e tornando possível a humanos e máquinas comunicarem eficazmente e trabalharem de forma colaborativa para resolver problemas cada vez mais complexos”, refere citado em comunicado. Este trabalho terá implicações em sistemas de tradução automática e de conversação livre.

Também em 2017 o investigador tinha recebido 1,4 milhões de euros de uma bolsa do ERC para combinar métodos de aprendizagem estatística estruturada com redes neuronais artificiais, aplicando-os ao processamento de linguagem natural.

Filosofia do cinema: Susana Viegas

Susana Viegas recebe 1,7 milhões de euros para um projecto que tem como grande objectivo explorar as ligações entre filosofia e cinema, refere-se num comunicado sobre o financiamento da investigadora do Instituto de Filosofia da Nova (Ifilnova) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

O projecto junta a filosofia e o cinema com um interesse comum: a morte. “Nunca se tinha trabalhado a fundo o tema da morte no cinema”, destaca a investigadora no comunicado. O seu trabalho defenderá a hipótese de que esta experiência estética é, no seu ponto essencial, comparável à experiência da própria mortalidade. “Aprofundar a compreensão do modo como cinema, tempo e morte se interligam vai permitir compreender melhor uma visão contemporânea do mundo e de nós próprios que prevalece numa sociedade que afasta o pensamento da morte do nosso quotidiano, mas que, paradoxalmente, é dominada por imagens de morte mediadas por ecrãs”, explica Susana Viegas.

Este projecto de cinco anos, além dos seus grandes eixos de investigação teórica, terá também actividades para a comunidade académica e para o público em geral. Uma das iniciativas será a realização de vários ciclos de cinema que terão a morte como tema principal, adianta-se por agora no comunicado de imprensa.

O financiamento que Susana Viegas recebe agora tem também a particularidade de ser a primeira bolsa do Conselho Europeu de Investigação a ser atribuída à Filosofia do Cinema. Um dos grandes contributos deste projecto será precisamente fortalecer esta área emergente e, pelo caminho, entender uma situação que, provavelmente, todos se reconhecem: evita-se a morte no quotidiano para depois esta ser abordada no cinema ou em séries.

Ciência E Ambiente Financiamento Do Conselho Europ

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2023-02-01T08:00:00.0000000Z

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