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Estado vai investir milhões em mouchão inundado que, afinal, é privado

Degradação do mouchão da Póvoa arrasta-se há quase sete anos. Agência Portuguesa do Ambiente elaborou novo projecto, mas tribunal reconhece propriedade privada contra posição do Ministério do Ambiente

Jorge Talixa

Tudo começou em Abril de 2016, quando um pequeno rombo de pouco mais de 30 metros no dique de protecção do mouchão da Póvoa começou a gerar inundações no interior daquela que é (era) a maior ilhota do estuário do Tejo. Desde então sucederam-se as reclamações de autarcas locais e as promessas de intervenção da tutela do Ambiente, que nunca se concretizaram. O rombo cresceu para mais de 200 metros e o mouchão de 810 hectares está, em grande parte, inundado, com solos que já foram extremamente férteis completamente salinizados. Teme-se mesmo o desaparecimento da ilhota, para onde chegaram a ser apresentados projectos turísticos de grande dimensão.

Quase sete anos passados sobre a detecção do rombo ainda não há perspectivas de realização de obras de reparação. Logo em 2016, de acordo com os antigos proprietários, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) não terá permitido uma intervenção rápida sem a apresentação de um projecto considerado adequado. Dois anos depois, o então ministro do Ambiente Matos Fernandes visitou o local do rombo e anunciou um investimento de reparação estimado em um milhão de euros a concretizar até final de 2018. Alegou, então, que era entendimento do Ministério do Ambiente que o mouchão da Póvoa era propriedade do Estado e integrava-se no chamado “domínio hídrico”. E assegurou que nenhuma entidade privada demonstrara ainda perante o Ministério do Ambiente ter direitos de propriedade sobre este mouchão. Matos Fernandes acrescentou que o mouchão seria vocacionado para a agricultura e para a protecção da avifauna e que qualquer eventual actividade turística futura seria apenas de visitação.

Mas, meses depois, o processo voltou à estaca zero. A empresa que ganhara o concurso para a obra decidiu não avançar, alegando que constatara no local que o rombo já era muito maior e que o projecto de intervenção estava desactualizado. Sucederam-se as hesitações, a responsabilidade para a recuperação e preservação do mouchão da Póvoa chegou mesmo a ser indicada como uma das contrapartidas da construção do novo aeroporto de Lisboa e nada avançou.

Mouchão, afinal, é privado

Já no final de Setembro passado, todavia, o Tribunal da Relação de Lisboa deu razão ao administrador de insolvência da empresa Ilha Indústria Agrícola, rejeitando um recurso do Estado e concluindo que o mouchão da Póvoa integrava mesmo o património desta sociedade. Os juízes da Relação de Lisboa sublinham que o mouchão se encontra registado como prédio misto na Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira. “Presume-se que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define. Para iludir esta presunção derivada do registo, o Estado teria de alegar e provar os factos demonstrativos de que a titularidade inscrita não corresponde à verdade, o que claramente não conseguiu”, sustentam os juízes da Relação.

O acórdão, a que o PÚBLICO teve acesso, acrescenta que o administrador de insolvência da Ilha, SA veio, por apenso aos autos principais de insolvência, propor uma acção contra o Estado, solicitando que seja judicialmente reconhecido o direito de propriedade privada do Mouchão da Póvoa da Santa.

Alega que o referido mouchão constitui propriedade privada desde data anterior a Dezembro de 1864, tendo aquele imóvel sido arrematado em hasta pública pela Companhia das Lezírias do Tejo em Junho de 1836, após autorização régia de venda do domínio directo das Lezírias do Tejo. Desde então passou pelas mãos da Sociedade Mouchão da Póvoa e foi adquirida, em 1987, pela empresa agora insolvente.

Reagiu o Estado, contestando a acção e apontando a alegada “falta de registo da acção de reconhecimento de propriedade” e o desconhecimento da “veracidade” dos documentos particulares apresentados pelo administrador de insolvência. O tribunal julgou, no entanto, provada a acção e reconheceu o direito de propriedade da empresa, rejeitando o pedido de condenação do Estado por litigância de má-fé e absolvendo-o do pagamento de multa e indemnização.

Inconformado com esta decisão, o Ministério Público, em representação do Estado, interpôs recurso, que teve decisão do Tribunal da Relação em Setembro.

Há uma semana, o estado a que chegou o mouchão da Póvoa voltou a ser abordado na reunião camarária de Vila Franca de Xira. David Pato Ferreira, vereador social-democrata, observou que, “passado este tempo todo, o mouchão continua inundado e, infelizmente, parece ser um estado sem retorno”. “O PS tem muita dificuldade em assumir que já não há nada a fazer para o salvar”, afirmou. Fernando Paulo Ferreira (PS), presidente da Câmara de Vila Franca, explicou que a última informação que tem da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) é a de que “o projecto está a ser feito neste momento” e que quer lançar concurso para a obra em Maio.

A APA, em resposta ao PÚBLICO, sustenta que “o novo projecto para reparação do rombo e reconstrução de uma porta-de-água no mouchão da Póvoa encontra-se em elaboração, com conclusão prevista no final do próximo mês de Abril”. De acordo com a agência, o concurso para execução da empreitada será lançado logo após a aprovação do projecto.

Já sobre o futuro da ilhota, a APA diz que “não tem indicações sobre o que poderá ser o aproveitamento/ função após a realização das obras de reabilitação dos rombos, sendo, no entanto, e no âmbito das suas competências do domínio hídrico, responsável pela pronúncia sobre qualquer intervenção que o proprietário pretenda levar a efeito no mouchão da Póvoa”.

A última estimativa conhecida apontava para a necessidade de investir mais de dois milhões de euros na reparação dos rombos ( já será mais do que um) existentes no dique, prevendo-se o recurso a verbas do Fundo Ambiental.

Ilhota Em Frente À Póvoa De Santa Iria Em Risco De

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2023-02-01T08:00:00.0000000Z

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