Público Edição Digital

Juízes indicados pelo PSD abriram portas à viabilização da eutanásia no TC

Por um voto apenas, o Tribunal Constitucional decidiu “chumbar” a última versão da lei. Dois juízes que já terminaram mandato foram fundamentais para a declaração de inconstitucionalidade

Maria Lopes

Apesar das vozes críticas sobre a decisão do Tribunal Constitucional de se declarar contra a lei fundamental a lei da eutanásia, com mais este afinamento (simples e semântico) o tribunal parece estar, na prática, a ajudar a Assembleia da República a construir uma lei verdadeiramente à prova de bala. O próprio Presidente da República assim o entendeu, ao dizer que o TC “abriu caminhos para a solução”.

Essa é, pelo menos, a leitura que se pode fazer do facto de o presidente, João Pedro Caupers, ter tido a preocupação de rematar a sua intervenção na leitura das conclusões do acórdão que o tribunal já considerou, logo no primeiro chumbo, que “o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias e que as condições em que é legalmente admissível a morte medicamente assistida têm de ser ‘claras, antecipáveis e controláveis’, cabendo ao legislador defini-las de modo seguro para todos os intervenientes”.

Além disso, nenhum dos acórdãos apontou quaisquer problemas ao ponto fundamental da argumentação da direita: inviolabilidade da vida humana. Tal atitude mostra que mesmo os juízes indicados pelo PSD são mais progressistas do que muitos sociais-democratas provavelmente gostariam.

Direita e esquerda estão absolutamente equilibradas nas tendências de juízes. Há cinco juízes eleitos pela AR indicados pelo PS que votaram todos contra a declaração de inconstitucionalidade: Mariana Canotilho, Joana Fernandes Costa, José João Abrantes, António Ascensão Ramos e Assunção Raimundo — a que se soma a tendência de esquerda de Caupers. Os cinco indicados pelo PSD e eleitos pelo Parlamento são Maria Benedita Urbano, Gonçalo Almeida Ribeiro, Afonso Patrão, José Teles Pereira (todos votaram pela inconstitucionalidade) e José Figueiredo Dias (que votou contra). Também se pode juntar aqui Pedro Machete por ser conotado com a direita.

Três juízes indicados pelo PSD — Benedita Urbano, Gonçalo Almeida Ribeiro e Afonso Patrão — votaram

pela inconstitucionalidade da caracterização de sofrimento necessária para se pedir a eutanásia, mas consideraram constitucionais os conceitos de “doença grave e incurável” e “lesão definitiva de gravidade extrema” e a ausência da exigência de “doença fatal”. José Figueiredo Dias até votou tudo ao lado dos juízes nomeados pelo PS: foi contra a declaração de inconstitucionalidade.

Só os cooptados Lino Ribeiro, Pedro Machete e um terceiro, José Teles Pereira — o quinto indicado pelo PSD —, consideravam também que existiam problemas de constitucionalidade na outra parte (importante) para a qual Marcelo Rebelo de Sousa pedia que olhassem: a supressão da exigência de uma “doença fatal” e da “antecipação da morte”. Os três consideravam que os conceitos de “doença grave e incurável” e de “lesão definitiva de gravidade extrema” feriam os princípios constitucionais.

Mandatos findos decisivos

Os dois juízes do Tribunal Constitucional cujos mandatos de nove anos já expiraram, Pedro Machete e Lino

Ribeiro, foram determinantes para que a nova versão do texto da legalização da eutanásia fosse chumbada. Pedro Machete, cujo mandato está para lá do prazo desde Outubro de 2021, e Lino Ribeiro, cujos nove anos de mandato se cumpriram em Junho do ano passado, votaram ambos pela inconstitucionalidade da norma sobre a explicitação do conceito de sofrimento.

Ao mesmo tempo, foram vencidos na decisão de declarar inconstitucionais as definições de “doença grave e incurável” e de “lesão definitiva de gravidade extrema”. Pedro Machete (conotado com a ala direita) e Lino Ribeiro (cujas opções políticas nunca foram fáceis de determinar) foram cooptados pelos restantes dez juízes do plenário do TC, eleitos pela Assembleia da República. E o mesmo aconteceu com o actual presidente, João Pedro Caupers, cujo mandato de nove anos termina em Junho deste ano, e que é conotado com a ala esquerda.

Pedro Machete, Lino Ribeiro e José Teles Pereira foram os juízes que mais se reviram nas dúvidas do Presidente da República. No requerimento que enviou ao TC, Marcelo Rebelo de Sousa diz que o Parlamento optou, nesta terceira versão, por “um regime menos restritivo” nos critérios para o doente poder pedir a morte medicamente assistida, porque suprimiu a “existência de doença fatal e alusão a ‘antecipação da morte’”. Ao invés do texto submetido ao TC no início de 2021, agora o nível de gravidade da doença que justifica o recurso à eutanásia “passou a ser a de ‘doença grave e incurável’, definida como ‘doença que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade”, descreve o Presidente.

Marcelo argumenta: “A dúvida que se pode suscitar é a de saber se esta nova definição e, em particular, a alusão a ‘grande intensidade’ é de molde a corresponder à densificação e determinabilidade exigida pelo antes aludido acórdão do TC, tendo em consideração a supressão do requisito da ‘doença fatal’ e da alusão à ‘antecipação da morte’.” Na carta que enviara ao Parlamento aquando do veto político à segunda versão do texto, em Novembro de 2021, Marcelo considerava que o Parlamento, ao “optar por renunciar à exigência de a doença ser fatal”, estava a “ampliar a permissão da morte medicamente assistida”, alinhando pela “solução mais drástica ou radical” e, portanto, a afastar-se “da solução de alguns estados federados norte-americanos, do Canadá e da Colômbia”.

E levantava mesmo a dúvida sobre “uma questão mais substancial: corresponde tal visão mais radical ou drástica ao sentimento dominante na sociedade portuguesa?” Na terceira versão, os deputados não deixaram dúvidas sobre a resposta ao Presidente, ao continuarem a não exigir a “doença fatal” para a eutanásia.

Política Morte Medicamente Assistida

pt-pt

2023-02-01T08:00:00.0000000Z

2023-02-01T08:00:00.0000000Z

https://ereader.publico.pt/article/281685438987756

Publico