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Uma greve de terra queimada

Maria João Marques Economista. Escreve à quarta-feira

Os professores têm motivos de queixa. Merecem a solidariedade do país. Isto dito, também há que dizer que as greves têm limites

Acontestação e a luta dos professores está com élan e pujança, não há dúvida. No fim de semana passado em Lisboa desfilaram mais, dizem, de cem mil professores. Na manifestação anterior, passei por ela na Avenida da Liberdade e era impressionante — de tamanho e de energia.

É impossível não concordar com algumas das reivindicações dos professores. Pelo contrário: temos vontade de perguntar que mente retorcida desenhou o esquema atual — e que perdura há décadas — obrigando os professores a viverem quais caixeiros-viajantes anos a fio, sem estabilidade de vida, sem vínculos às escolas, permanentemente no escalão de entrada. Tudo isto, por vezes, por décadas. Mesmo nos ordenados — onde os professores não têm por que se queixar, já que ganham comparativamente mais que outros licenciados — a verdade é que não são suficientes para seduzir recém-licenciados para o ensino, nem as entradas compensam as milhares de saídas que se preveem para os próximos anos com reformas.

Nem só para a carreira dos docentes o esquema atual traz distorções. O mais evidente por estes dias, em que se vive escassez de habitações com rendas adequadas aos rendimentos médios do país, e que se faz sentir bem para fora das cidades do litoral, é obrigar os professores a pagarem uma segunda casa no local onde trabalham. Parte grande do ordenado vai para as despesas com esta segunda casa. Por outro lado, estes professores deslocados trazem um aumento da procura por casas nos locais onde são colocados. E sabe-se o que maior procura faz aos preços: dá-lhes adubo.

Os alunos, pelo seu lado, têm professores menos motivados, com as ansiedades e turbulências que as deslocações e os custos inerentes trazem. Estabilidade do corpo docente, benéfica para escolas e alunos, é uma miragem. Há até contratações de professores sem horário completo, com correspondente diminuição de ordenado. Se um empregador privado tratasse tão mal os seus trabalhadores, a ACT encontraria forma de lhe passar multas atrás de multas. Mas o Ministério da Educação promove, sem punição, precariedade absoluta e inferniza a

O Stop tem provocado o caos. Já não se percebe se o objetivo é vergar o Governo às pretensões dos professores se é gerar um ambiente de contestação pré-revolucionário

vida dos professores como efeito secundário.

Custa acreditar que se tenha desenhado um sistema tão mau. E que esse sistema mau permaneça mais ou menos intacto há várias décadas. Vermos António Costa, primeiro-ministro vai para oito anos, reputar de “precarização inaceitável” a vida dos professores (mas que o primeiro-ministro aceitou e não alterou durante sete anos) foi um momento digno de Óscares do ridículo da política nacional.

Em suma, os professores têm motivos de queixa. Merecem nisto a solidariedade do país. E até compreendo as relutâncias em envolverem as câmaras municipais na contratação de professores. É mais fácil esconder incompetências e amiguismos e punições mesquinhas em câmaras pequenas fora da vista dos grandes jornais e televisões que em instituições dependentes da administração central.

Isto tudo dito, também há que dizer que as greves têm limites. Que as lutas, mesmo as legítimas e para defender interesses justificados, não podem atropelar de maneira corrosiva e excessiva os interesses de terceiros.

É divertido, para quem está fora, ver a guerra por protagonismo entre a Fenprof e o novo sindicato Stop. A Fenprof, tal como a CGTP e os demais sindicatos que a compõem, instrumentaliza a ação sindical segundo os interesses circunstanciais do PCP. Assim, durante os anos da “geringonça”, as lutas laborais ficaram suspensas, todos os direitos já haviam sido alcançados, afinal o PCP era o parceiro sólido do PS. Os professores continuavam quais caixeiros-viajantes, precários, sem progressão na carreira, mas não interessava nada porque o PCP estava amigo do PS. Era inevitável que a secundarização da ação sindical face a interesses partidários do PCP abrisse espaço a novos sindicatos mais independentes. Abriu e estes apareceram.

Os novos sindicatos, além de independentes de partidos, são mais criativos, mais aguerridos, não têm o lastro dos hábitos do passado, podem inovar. O Stop inovou e, de facto, tem gerado o caos na vida de miúdos e famílias que contam com a escola pública. Às tantas já não se percebe se o objetivo é vergar o Governo às pretensões dos professores se é gerar um ambiente de contestação pré-revolucionário.

O certo é que se trata de uma greve “chica-esperta”, por vezes com expedientes pouco sérios. Sei de um caso de Lisboa em que os pais eram informados de manhã de que não existiriam aulas, os alunos regressavam a casa, depois chegavam os professores e no resto do dia marcavam falta aos petizes que não estavam presentes.

Os professores têm direito a lutar pela sua carreira. Os alunos também têm direito à educação. As mães e os pais têm direito à previsibilidade das suas vidas. Deixa qualquer um perplexo a falta de respeito que os professores em luta têm pelos também legítimos interesses de alunos e pais. Aparentemente esperavam que os pais ficassem satisfeitos por terem repetidamente de faltar ao trabalho — e perder o correspondente rendimento — para que os professores sejam aumentados.

Quando os pais protestam, são prontamente acusados de verem a escola como um depósito de crianças ao invés de um lugar de ensino. Para o Stop, aparentemente, os pais devem estar todos disponíveis para sacrificar a carreira mal nasça um rebento, neste caso em benefício de terceiros que dão aulas. Curioso como os professores exigem solidariedade e empatia das mães e pais quando lhes estão a disromper a vida sem qualquer respeito.

Os alunos, pelo seu lado, vêm de uma pandemia que lhes interrompeu as aprendizagens. Sobretudo grave nos miúdos de contextos carenciados. Greves sucessivas é tudo o que não precisavam agora.

No segundo confinamento da pandemia, as escolas mantiveram-se abertas para receber crianças sinalizadas pela CPCJ e as recetoras da Ação Social Escolar. É sabido da necessidade de vigilância pela escola dos alunos que vivem em contextos potencialmente violentos. Há alunos pobres que precisam das refeições que tomam nas escolas. E, no entanto, o Stop quer fechar as escolas, deixando crianças sem refeições e sem vigilância da violência que vivem. Os serviços mínimos foram acordados em arbitragem, garantindo que as escolas se mantêm abertas, não estando sequer abrangidos números mínimos de aulas. Ora o Stop contesta até esta decisão minimalista envolvendo o pessoal não docente. Chegados a este ponto, a greve do Stop é uma greve indigna.

Uma coisa é uma greve. Outra coisa é terra queimada.

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2023-02-01T08:00:00.0000000Z

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