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Se Jesus viesse cá em Agosto

Manuel Soares Presidente da direcção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Escreve quinzenalmente à quarta-feira

Apropósito das polémicas à volta da Jornada Mundial da Juventude, parece-me que é possível conciliar a laicidade do Estado com o apoio financeiro a iniciativas religiosas, se for nítido que se trata de um investimento com retorno e não de um simples donativo. A promoção do país, a recuperação urbanística e ambiental de uma zona degradada e o ganho económico proporcionado pela estadia de centenas de milhares de pessoas são razões válidas para aceitar que o Estado e as autarquias de Lisboa e Loures invistam 80 milhões de euros num evento católico daquela grandeza. Portanto, o problema é outro.

Nesta história mal contada, há aspectos que precisam de clarificação. É perturbador que se saiba quanto dinheiro vão gastar o Estado e as autarquias de Lisboa e Loures, mas não se saiba quanto vai gastar a Igreja, directamente ou através da fundação JMJ Lisboa 2023 que criou para organizar o evento. Até ao momento, as respostas vagas e evasivas não tranquilizam. Certamente que a logística do evento é cara. Alojar, deslocar e alimentar centenas de milhares de pessoas custa muito dinheiro. Fala-se em 30 milhões de euros só para refeições. Porém, as inscrições dos participantes são pagas e as dormidas são maioritariamente em casas particulares e pavilhões. No site da JMJ Lisboa 2023 os valores variam entre os 50 e os 235 euros por pessoa, a que acrescem donativos de dez euros para um fundo de solidariedade. Ora, se o número de participantes chegar a um milhão, como se prevê, estamos a falar de receitas para a organização muito elevadas. Noutros países, as jornadas pagaram-se a si próprias.

Sendo assim, em nome da transparência e do interesse público, é preciso saber como vai ser esse dinheiro aplicado e o que se faz ao que sobrar. Já li algures que o remanescente das inscrições e donativos recebidos pela Igreja será entregue às autarquias de Lisboa e Loures para projectos relacionados com a juventude. Pois bem, se é assim, tem de haver algum documento escrito que garanta esse compromisso e um plano financeiro qualquer que esclareça estas interrogações. Isso tem de ser tornado público.

Outro ponto nada claro prende-se com o tão esperado retorno financeiro para o país, que uns dizem ser de 270 e outros de 350 milhões de euros. Segundo o bispo responsável pela fundação JMJ Lisboa 2023, o valor vai agora ser contabilizado pelo Instituto Superior de Economia e Gestão. Só agora?

Então isso não se fez antecipadamente? Não existem instrumentos de previsão que permitam calcular com rigor o retorno do investimento? Quer dizer que o Estado e as câmaras de Lisboa e Loures decidiram investir 80 milhões de euros com base em palpites escrevinhados em cima de um joelho qualquer? Para isto não ser inacreditável, impõe-se que as entidades envolvidas digam como é que estimaram o retorno financeiro e tornem públicos esses estudos.

Chegados aqui, falta o triste episódio do palco megalómano. Aquela estrutura, para além de atentar contra os valores que a Igreja proclama, é sumptuária, desnecessária e irrecuperável. Como é que uma obra de construção civil feita em cinco meses pode ser tão cara? O betão e tijolo vão ser cobertos de ouro e pedras preciosas? E alguém acredita seriamente que aquilo vai ter no futuro alguma utilidade? Que eventos podem fazer-se num palco gigantesco onde cabem 2

É simplesmente incrível que não fosse possível fazer um palco digno e funcional com muito menos dinheiro

mil pessoas, com oito sacristias e uma cruz com oito metros de altura? É simplesmente incrível que não fosse possível fazer um palco digno e funcional com muito menos dinheiro.

Estar agora tudo a sacudir a água do capote é o habitual que não espanta. O presidente da Câmara de Lisboa diz que o palco corresponde às especificações exigidas pela Igreja. A Igreja diz que não sabia de nada e que num contexto de dificuldades económicas aquele palco “magoa todos”. Outra vez uma história mal contada. Alguém tomou a decisão de aprovar o projecto e adjudicar a obra. Tem de existir uma memória descritiva e um projecto de execução com tudo pormenorizado. Entre a Câmara de Lisboa e a fundação JMJ Lisboa 2023 alguém há-de saber como se chegou a isto. A poucos meses do evento, já não se vai corrigir nada. Não há tempo para alterar significativamente o projecto, nem para adiar a execução. Os cinco milhões é para esquecer. Porém, em nome da decência, é essencial conhecer-se ao pormenor todo o processo de decisão.

Jesus, que um dia, vendo a multidão, subiu a um monte, para se sentar numa pedra e falar aos discípulos sobre a vanidade de juntar tesouros na terra, se cá viesse em Agosto, ali ao Parque Tejo, e visse o luxuoso mamarracho construído em seu nome, havia de corar de vergonha.

Espaço Público

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2023-02-01T08:00:00.0000000Z

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