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Está aberta a rota para uma arquitectura do bacalhau e de outros peixes

O arquitecto e investigador André Tavares iniciou em Portugal uma linha de pesquisa que tenta perceber a relação entre a ecologia marinha, o peixe e a arquitectura. O primeiro livro está aí

Abel Coentrão

Nos últimos anos, o arquitecto e investigador André Tavares calçou umas galochas, vestiu um impermeável e subiu ao cesto da gávea para perceber, na vastidão do mar, se era possível uma história da arquitectura que a cruzasse com o oceano mas, sobretudo, com os seres marinhos que o habitam. Acabado de aportar às livrarias, o livro Arquitectura do Bacalhau e de Outras Espécies carrega nos porões os resultados das primeiras incursões por mares pouco ou nada navegados, entre nós, abrindo novos horizontes para a compreensão de uma actividade, a arquitectura, que, garante ele, está longe de se esgotar na terra firme onde assenta alicerces.

Editado pela Dafne, o livro é coassinado por Diego Inglez de Souza — que escreve com Tavares os capítulos dedicados à sardinha, ao atum e à pescada. E inclui um outro capítulo dedicado às estratégias de territorialização do mar dos pescadores da Póvoa de Varzim/Vila do Conde para a pesca do polvo (com impacto no peixe-galo e no tamboril), resultante de uma interessante, e recente, tese de mestrado em arquitectura de José Pedro Fernandes, orientada por Marta Labastida, da Escola de Arquitectura, Arte e Design da Universidade do Minho. Mas as suas quase 300 páginas profusamente ilustradas com fotografias e plantas que mapeiam essa relação entre o peixe, o ambiente natural marinho e o ambiente construído são apenas “uma primeira aproximação a um problema complexo”, assume André Tavares, esperando que ele possa contribuir para “uma história ecológica da arquitectura que está a ser construída”.

A palavra “ecologia” é o cerne do desafio a que Tavares se vem propondo, quando olha para a arquitectura não apenas como um fenómeno humano, um saber-fazer com regras e dispositivos de expressão próprios. Nesta linha de investigação, procuram-se marcas da influência da biologia, da ecologia das espécies estudadas na paisagem construída, com o intuito de perceber o quanto essas construções afectam os ecossistemas e a própria diversidade marinha. Esta interdependência resulta, desde logo, da assunção do peixe como um recurso económico, passível de transformação e valorização comercial, que determina estratégias e distâncias de pesca (local, costeira, do alto ou longínqua), a arquitectura das redes e outros aparelhos usados, a arquitectura dos barcos e navios, dos portos onde estes atracam e das unidades industriais onde o pescado é conservado e transformado.

Ecossistema sem fronteiras

Entre os esteios e armazéns que ocupavam longas áreas de beira-mar, para a seca do bacalhau pescado e salgado a bordo dos navios nos mares do fim do mundo; nos palheiros dos pescadores da arte xávega, na costa a sul de Espinho; nas fábricas de conserva de sardinha que transformaram esta espécie, apreciada mas perecível, num produto de exportação e num produtor de paisagens urbanas industrializadas, em várias cidades costeiras; ou até nos arraiais para a pesca do atum (e as próprias almadravas, no mar): não faltam, nesta obra, exemplos desta interdependência. Esta que é afectada pela volatilidade do ecossistema marinho e dos mananciais de peixe, mas também pelos ritmos, bem mais lentos, e longos, com que, em terra, essa relação se exprime, levando, não raras vezes, a que equipamentos entrem em funcionamento quando, no mar, os recursos que lhe deram origem dão sinais de esgotamento.

Essa incapacidade de ajustar a arquitectura ao estado de um ecossistema sem fronteiras, afectado por decisões tomadas em múltiplos países e pelo nosso próprio esforço de pesca aconteceu com o bacalhau, vítima da sobrepesca e alvo de uma moratória de pesca nos Grandes Bancos, em 1992; aconteceu nos últimos anos com a sardinha, cujas capturas foram reduzidas drasticamente; e com o atum, no Algarve, que desapareceu na década de 1970. Foi-se o peixe e, em poucas décadas, fecharam as secas de bacalhau, desmantelaram-se navios, desindustrializaramse cidades. E esta é, para Tavares, uma lição que a arquitectura tem de incorporar, nestes tempos em que todos os nossos gestos são (ou deveriam ser) medidos pelo seu impacto ecológico imediato e diferido no tempo. “Julgávamos que arquitectura e ambiente eram dois mundos separa

dos, mas não são”, assinala, considerando que mudar a história da arquitectura e os elementos que nela são incorporados é uma forma de mudar a própria arquitectura.

É claro que a arquitectura não pode ser amarrada ao mastro e vergastada por decisões que, a priori, têm em conta argumentos económicos (pescar mais, vender mais), políticos (fazer da pesca longínqua, do bacalhau, a continuação da gesta “heróica” dos Descobrimentos) ou sociais (garantir emprego e sustento das comunidades à beira-mar). Mas, mais do que encontrar culpados, Tavares pretende continuar, com esta linha de investigação, um caminho que já vem sendo trilhado noutros domínoutros nios, procurando apontar a atenção mais para os processos do que para as formas da arquitectura e, do lado do público, contribuir para mudar a percepção social (e política) desta actividade profissional.

Nesse aspecto, este trabalho não consegue deixar de ser menos sobre os peixes e muito sobre pescas — também elas determinadas por uma arquitectura, político-institucional já bem estudada, no caso do bacalhau, por Álvaro Garrido, que nos prenderam a uma cultura do bacalhau salgado-seco. E não ignora as inovações tecnológicas, impulsionadas pela revolução industrial, ao longo de todo o século XX, que puseram na nossa mesa peixe congelado pescado pontos do mundo e levaram à construção de grandes armazéns frigoríficos em Lisboa e no Porto, por exemplo. “Esse deslize conceptual resultou do foco geográfico na costa portuguesa e do enviesar da história ecológica para a história social. Em certa medida, essa concentração foi uma consequência da pandemia, que circunscreveu o que devia ter um âmbito atlântico ao estudo de um espaço político específico”, resume o autor.

Em todo o caso, o objecto de estudo estava bem circunscrito à partida, levando Tavares a deixar de lado, por exemplo, os bairros de casas económicas para pescadores construídas pelo Estado Novo, sob o comando do delegado-geral das Pescas, Henrique Tenreiro, em várias comunidades costeiras. O arquitecto entende que estas construções não têm qualquer relação com o peixe e vê-as mais como a expressão de opções políticas de desenvolvimento económico e controlo social das gentes do mar. Estas eram identificadas pelo próprio regime como difíceis de domar e, nos anos 1930, reagiram à nova arquitectura económico-institucional das pescas da sardinha e do bacalhau, actividades onde trabalho e capital passaram a estar agremiadas, em favor do segundo, com greves só reprimidas com recurso à violência policial.

Alargar horizontes

Diferente é o caso das cabanas da arte xávega, erguidas nas praias onde esta se praticava, ou as habitações incluídas no programa arquitectónico do Arraial Ferreira Neto, associado a uma armação para a pesca do atum, em Tavira, que se destinam a responder, em concreto, ao alojamento de mão-de-obra para uma pesca e espécies, com as quais estavam territorial e sazonalmente relacionadas.

As almadravas atuneiras, armações de redes, bóias e as âncoras (hoje feitas monumento, em Tavira) que serviam a captura de tunídeos são, para o investigador, expressões de outras arquitecturas de interesse para a investigação. E o mesmo se passa com o trabalho de José Pedro Fernandes sobre os “quintais”, também denominados “terrenos”, em que os pescadores da maior comunidade marítima do país, a da Póvoa de Varzim/Vila do Conde, estruturam os seus “mares”, cujos fundos são demarcados por potes (os sucedâneos de plástico dos alcatruzes de barro, para o polvo) e redes para outras espécies. A estratégia, bem estudada do ponto de vista da antropologia das pescas por Luís Martins, que fez doutoramento a partir de um estudo de caso nestes territórios gera, como em terra, tensões entre quem pretende aceder a um espaço que não é de ninguém e terá também um impacto ecológico, nota André Tavares.

Por todas as dimensões que abarca, é desafiadora esta obra colectiva, fotografia em olho de peixe que abre ângulos e recebe imensos contributos de várias áreas científicas que Tavares faz questão de enumerar na sua parte final. A Arquitectura do Bacalhau e de Outras Espécies resume anos de trabalho realizados a partir de Portugal — e das suas relações com o Atlântico norte, principalmente —, trabalho esse que agora vai ser continuado com uma bolsa internacional e mais investigadores envolvidos, passando a navegar por outros territórios e espécies. Este alargar de horizontes, admite o coordenador do projecto, deverá confirmar algo que já lhe pareceu evidente nas primeiras incursões quando se olha, por exemplo, para as secas de bacalhau na Terra Nova e as primeiras secas erguidas em Portugal: que aquilo que, fechados em pesquisas à vista desta ocidental praia, nos parece vernacular, próprio de uma cultura muito nossa, tem similitudes óbvias com expressões da arquitectura da pesca noutras costas atlânticas. Ou não houvesse, pelo meio, um mar e o seu peixe, que tanto separa como une as comunidades que deles dependem.

Cultura História Ecológica Da Arquitectura

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2022-11-28T08:00:00.0000000Z

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