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Grupo liderado por Maria de Belém propõe medidas para melhorar saúde das mulheres

Mulheres com enfarte são tratadas mais tardiamente do que os homens, diz grupo de trabalho, que defende que a formação médica tem de contemplar as especificidades da saúde feminina

Ana Maia

As doenças cardíacas e cerebrovasculares estão entre as principais causas de morte na Europa e em Portugal. Apesar das melhorias conseguidas nos últimos anos, as patologias do aparelho circulatório foram responsáveis por 30% dos óbitos registados no nosso país em 2018. Mas, enquanto nas mulheres representaram 33% de todas as mortes, neles o peso desceu para 21%.

Esta é apenas uma das diferenças que se observam quando se olha para os indicadores de saúde de homens e mulheres. A análise foi feita por um grupo com representantes de várias sociedades científicas e liderado pela antiga ministra da Saúde Maria de Belém Roseira. Num documento que será apresentado hoje, numa conferência em Lisboa, deixam diversas recomendações com vista à melhoria das condições de saúde das mulheres em Portugal. E defendem a aprovação de uma estratégia nacional para a saúde da mulher. A proposta será apresentada à Assembleia da República, ao Governo e à Direcção-Geral da Saúde.

No documento, a que o PÚBLICO teve acesso, o grupo de trabalho A Saúde das Mulheres em Portugal refere que “a desvantagem feminina cardiovascular assenta em três pilares: a própria mulher, os profissionais de saúde e o papel dos factores de risco”. Por um lado, as mulheres tendem a desvalorizar o risco cardiovascular, por outro, os profissionais também abordam menos o tema e explicam menos os riscos às mulheres e “também são menos activos no início de tratamentos específicos”, como por exemplo o tratamento da dislipidemia (termo usado para designar todas as anomalias quantitativas ou qualitativas relacionadas com gorduras no sangue) em prevenção primária e secundária.

O grupo refere ainda que dados nacionais mostram que as mulheres com enfarte são tratadas mais tardiamente que os homens. “Isto resulta não apenas do atraso do reconhecimento dos sintomas por parte da mulher, como também pelo menor reconhecimento atempado por parte do profissional de saúde, uma vez que os sintomas são mais frequentemente atípicos.”

É preciso também ter em conta os factores de risco específicos das mulheres e que estão relacionados com o seu ciclo de vida. Por exemplo, na menopausa há uma redução da produção de estrogénios, que são cardioprotectores.

“Este é um exemplo muito prático e claro da importância de se ter uma estratégia de saúde para a mulher”, diz Maria de Belém Roseira ao PÚBLICO. Esta deve ser uma matéria a discutir na sociedade. “Ao sê-lo, alargase o âmbito da consciencialização para este problema e a necessidade de se intervir e ter políticas ajustadas. Ter profissionais preparados para lidar com este problema é fundamental para que venhamos a ter ganhos em saúde.”

O grupo diz também que é preciso aumentar a literacia em saúde das mulheres, para uma melhor identificação dos sintomas da doença, assim como aumentar o conhecimento dos profissionais de saúde “para um correcto diagnóstico e tratamento atempado” das doentes.

Defende-se igualmente que se promova a pesquisa sistemática das situações do foro ginecológico que estão associadas a maior risco cardiovascular em consultas como medicina geral e familiar e ginecologia, a que muitas mulheres recorrem, e a criação de um registo clínico nacional obrigatório dedicado a estas doenças, permitindo a existência de um retrato nacional.

Alargar os rastreios

O documento, que contou com a participação das sociedades portuguesas de Cardiologia, de Contracepção, de Reumatologia, de Senologia, de Psiquiatria e Saúde Mental, de Oncologia, de Medicina Geral e Familiar e da Liga Portuguesa Contra o Cancro, não restringe a sua análise à saúde. Há também um olhar sobre “as condicionantes sociais da mulher”, como o facto de elas estarem sujeitas a mais baixos salários e a maior carga de trabalho fora do emprego, o que condiciona a sua saúde e bem-estar. E é, por isso, que este é também um documento que promove a aplicação da máxima “saúde em todas as políticas”.

“Continuamos a não trabalhar dessa maneira”, diz a ex-ministra. “Trabalhar de acordo com esta metodologia significa prevenir o que já sabemos: que o lugar onde nascemos, o tipo de capacitação e de habilitações que temos e o rendimento que auferimos determinam a nossa a saúde. Para homens e mulheres. O que sabemos também é que as determinantes sociais são sempre mais

As determinantes sociais são sempre mais pesadas para elas, pelo que temos de ter uma discriminação positiva nestas políticas. Com elas, ganham todos. Ao se elevar a fasquia do que é necessário fazer para as mulheres, também se eleva para a sociedade em geral

Equipa é liderada por Maria de Belém Roseira e conta com a participação das sociedades portuguesas de Cardiologia, de Contracepção, de Reumatologia, de Senologia, de Psiquiatria e Saúde Mental, de Oncologia, de Medicina Geral e Familiar e da Liga Portuguesa Contra o Cancro

pesadas para elas, o que significa que temos de ter uma discriminação positiva nestas políticas. Com elas, ganham todos. Porque ao se elevar a fasquia do que é necessário fazer para as mulheres automaticamente também se eleva para a sociedade em geral.”

Este projecto surgiu depois de a antiga ministra ter sido contactada

pela Hologic, uma empresa de tecnologia médica de raiz norte-americana, que promoveu, juntamente com uma empresa de sondagens, “um trabalho de avaliação a nível mundial da saúde da mulher”. Considerou que os indicadores apurados precisavam de ser “levados mais a fundo numa perspectiva mais ajustada aos indicadores e condicionantes sociais nacionais”. “Daí, surgiu o convite às sociedades científicas para colaborarem e todas generosamente disseram que sim”, diz, referindo o “trabalho pro bono” que realizaram e que culminou neste documento.

A proposta de estratégia divide-se em dois blocos. Num, os eixos transversais como as determinantes sociais, a literacia em saúde, a transformação digital, a formação pré e pós-graduada médica ou a investigação e ensaios clínicos. “Quer nos ensaios clínicos de medicamentos, quer muitas vezes nos estudos científicos, nem sempre as amostras coincidem ou estão devidamente repartidas para que consigamos avaliar o seu impacto na saúde dos homens e na saúde das mulheres”, exemplifica Maria de Belém.

Para todas as áreas, apresentam várias recomendações. Por exemplo: basear as intervenções em saúde na mulher em abordagens por ciclo de vida, “de forma a facilitar uma compreensão integrada do conjunto de problemas que devem ser priorizados na saúde feminina”; produzir mais informação acessível informaticamente relativa à saúde da mulher; incluir na formação médica as especificidades da saúde da mulher; assegurar maior participação de mulheres em ensaios clínicos e assegurar iguais oportunidades de financiamento a mulheres investigadoras.

Depois existem os eixos específicos, que contemplam áreas como a saúde sexual e reprodutiva, a saúde mental, as doenças cardiovasculares, oncológicas, reumáticas, a violência de género e a comunidade LGBTQIA+.

Na área oncológica, por exemplo, os peritos sugerem “adaptar a legislação laboral para que as mulheres não sejam prejudicadas no seu direito de acesso aos programas de rastreio” e defende a personalização dos rastreios, “alargando as populações de risco para além das faixas etárias abrangidas”. E explicam: “Um dos exemplos simples desta situação é a mulher com história familiar de cancro da mama que sabe ser portadora de uma mutação genética que lhe confere maior risco e que, por isso, terá de iniciar a sua vigilância radiológica mamária de forma mais precoce” do que é a norma. Defende-se um modelo integrado que permita sinalizar os casos rastreados considerados prioritários e a criação de centros de referência na área dos tumores das mulheres.

“A actuação a nível da saúde, como noutras áreas, obedeceu ao paradigma masculino e, ao fazê-lo, quando estão em causa constituições biológicas diferentes, isto faz toda a diferença naquilo que é o impacto dos cuidados de saúde que se prestam”, diz Maria de Belém Roseira, esperando que as medidas propostas sejam agora discutidas por todos e melhoradas.

Sociedade Peritos Vão Propor Ao Parlamento Uma Est

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2022-11-28T08:00:00.0000000Z

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