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O direito das mulheres a um salário por inteiro

Sara Falcão Casaca

Quem prestou atenção à informação recentemente veiculada a propósito do Dia Nacional da Igualdade Salarial pode ter ficado sem saber qual o valor do diferencial remuneratório entre homens e mulheres em Portugal. Várias estatísticas foram divulgadas, embora sem o enquadramento que clarifique as diferenças metodológicas inerentes. Procuro aqui, com todo o esforço de síntese, contribuir para esse esclarecimento.

As mulheres auferem menos 11,2% do que os homens? É o que indica o valor apresentado pelo Eurostat para Portugal (ano de 2020) — uma cifra que se situa abaixo da média observada na União Europeia (13%), mas acima da registada no período anterior à pandemia (em 2018, por exemplo, era de 8,9%). A informação é recolhida a partir do Inquérito Europeu sobre a Estrutura dos Salários e tem a vantagem de possibilitar uma abordagem analítica comparativa entre Portugal e os demais países da União Europeia. Reporta-se, porém, apenas às remunerações praticadas em empresas com dez ou mais pessoas ao serviço — âmbito que está longe de ser amplamente representativo das práticas remuneratórias em Portugal.

Esta é a principal razão pela qual há um consenso relativamente generalizado de que a informação proveniente dos Quadros de Pessoal (QP), embora com limitações, é aquela que melhor serve os propósitos de investigação sobre a realidade nacional — desde logo, e muito sinteticamente, porque resulta de um procedimento administrativo anual que é de preenchimento obrigatório para as entidades empregadoras [informação recolhida pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP) do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS)]. No entanto, mesmo a partir dos QP, os valores diferem em função da informação selecionada para a análise: remuneração-base ou remuneração-ganho (inclui também prémios, subsídios regulares e remuneração por trabalho suplementar), remuneração mensal ou horária. Distinguem-se ainda em resultado dos diferentes procedimentos de cálculo.

A diferença salarial entre homens e mulheres é de 13,3%? Com base nos dados dos QP, este valor traduz a fórmula de cálculo mais simples (não ajustada) — i.e. o rácio entre o diferencial de remunerações médias base (mensais) entre os trabalhadores e as trabalhadoras por conta de outrem em regime de tempo completo, em 2020. É este o procedimento que tem servido de base à evocação do Dia da

Igualdade Salarial. Defendo aqui que o mesmo deveria ser revisto, tal como a tónica da recente campanha da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), intitulada Salário por inteiro para trabalho igual.

A alusão a salário por inteiro deveria ser concordante com o conceito de remuneração refletido no quadro legal, em linha com a Convenção da OIT n.º 100,o qual integra tanto a remuneração-base como as componentes complementares associadas a prémios e a subsídios regulares. Incorrendo no risco de transmitir uma visão redutora sobre o direito à igualdade salarial, a referência estatística utilizada na campanha refere-se, como acima descrito, exclusivamente à diferença entre as remunerações médias base dos trabalhadores e das trabalhadoras em regime de tempo completo. Deixa, portanto, de fora parte importante das remunerações efetivamente auferidas e oculta um diferencial remuneratório em desfavor das mulheres de cerca de 16% nas remunerações-ganho mensais. Exclui ainda a situação dos/as trabalhadores/as em regime de tempo parcial, quando, pelos nossos cálculos, a diferença salarial está longe de poder ser ignorada — 17% nas remunerações-ganho mensais.

Observemos agora os valores que consideramos mais úteis ao debate público. E se homens e mulheres detêm atributos distintos em termos de habilitações escolares e qualificações, experiência laboral (diferenciais em capital humano) que justificam os diferenciais remuneratórios existentes? Ora, se “expurgarmos” o efeito das diferenças entre as características observadas de homens e mulheres — idade, nível de escolaridade, antiguidade e regime de tempo de trabalho —, o diferencial ajustado é de 21% e 19% para as remunerações-ganho mensais e por hora, respetivamente (cálculo que considera as remunerações das trabalhadoras e dos trabalhadores por conta de outrem, independentemente do regime de tempo de trabalho, registadas/os no universo da base de dados dos QP).

A propósito desta fonte de informação (QP), é de sublinhar a relevância da publicação a cargo do GEP — Barómetro das Diferenças Remuneratórias entre Mulheres e Homens enquanto boa prática de divulgação de informação num registo anual, decorrente da aplicação da Lei n.º 60/2018. A este respeito, embora compreendendo a intenção subjacente, temos sugerido a substituição de “ajustado” (designação que consta no Barómetro) por “diferencial ponderado por fatores”, uma vez que a literatura sobre o tema associa o “diferencial ajustado” àquele que decorre de uma regressão multivariada aplicada a microdados (e não a dados agregados), considerando — como já referido — as características observadas (e objetivas) das mulheres e dos homens comummente descritivas do seu capital humano.

É esta a fórmula que defendemos para o cálculo do diferencial remuneratório (estudo Os Benefícios Sociais Económicos da Igualdade Salarial, que integrei com Amélia Bastos, Heloísa Perista, Isabel Proença, João Cruz e Maria Francisca Amaro – ISEG, Cemapre e Cesis), complementada com um método de decomposição que nos permita determinar a componente explicada e a componente não explicada do diferencial remuneratório. Estamos cientes de que há melhorias e ajustamentos por conseguir, seja na recolha e tratamento de informação (base de dados), seja nos procedimentos de cálculo do diferencial e da sua decomposição. E acreditamos que só o trabalho colaborativo pode potenciar resultados mais robustos. Há muitas pontes de diálogo por aprofundar entre academia, órgãos de decisão política, organismos públicos, agentes económicos, parceiros sociais e sociedade civil.

Por fim, importa ter presente que um dos maiores desafios é o da operacionalização do conceito de “trabalho de valor igual”. Não se trata, ao invés do lema da campanha deste ano, de somente ambicionar a igualdade salarial por trabalho igual, mas antes a aplicação plena do quadro legal. A CITE bem o reconhece, é certo, desde logo quando elabora um guião que se destina a apoiar essa avaliação. Importa também sensibilizar, num registo coerente, os parceiros sociais e a opinião pública para a necessidade de ser garantido o direito ao salário por inteiro por trabalho de valor igual. No passado dia 14 de novembro, as tutelas governativas associaram-se, e bem, à evocação do Dia da Igualdade Salarial. Aguarda-se o dia em que se associarão efetivamente ao direito das mulheres a um salário por inteiro.

As tutelas governativas associaram-se, e bem, à evocação do Dia da Igualdade Salarial. Aguarda-se o dia em que se associarão ao direito das mulheres a um salário por inteiro

Professora do ISEG-ULisboa e investigadora do Socius/CSG

Em milhares de milhões de dólares

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2022-11-28T08:00:00.0000000Z

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