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Uma resolução questionável do Parlamento Europeu

Ricardo Cabral

Aresolução (não vinculativa) do Parlamento Europeu de quarta-feira, 23 de novembro, com 494 votos a favor, 58 contra e 44 abstenções, que “reconhece a Rússia como Estado patrocinador de terrorismo utilizando meios terroristas” merece-nos as seguintes considerações.

A embaixadora-geral dos EUA para a Justiça Criminal Global, Beth van Schaack, afirmou em Washington, D.C., na mesma quarta-feira, 23 de novembro, que os EUA não podem designar a Rússia como Estado patrocinador do terrorismo porque não cumpre os requisitos e critérios definidos na lei americana, afirmando: “A designação de um Estado patrocinador de terrorismo nos termos da forma como a lei dos EUA o define não é uma boa opção para a Rússia”, sugerindo que não é necessária e que os EUA não podem nem irão designar a Rússia como Estado patrocinador do terrorismo, como a União Europeia, estando a explorar outras possíveis designações.

Assim, parece provável que os EUA não venham a declarar a Rússia como um Estado patrocinador do terrorismo — o que os colocaria em rota de conflito militar direto com esse país.

Se não existe fundamento para os EUA declararem a Rússia como Estado que promove o terrorismo, porque é que o Parlamento Europeu aprova por muito larga maioria tal deliberação ainda que não vinculativa?

Para criar o enquadramento legal?

Tal como referido pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, é necessário um enquadramento legal — que não existe no presente e que parece de concretização difícil, como referido pela revista Politico — para confiscar ativos de cidadãos e empresas da Rússia, bem como as reservas em euros e ouro do Banco Central da Rússia depositadas na área do euro [zona euro].

Assim, a resolução do Parlamento Europeu parece ser uma via para criar o enquadramento legal que venha a permitir a prazo confiscar talvez 180 mil milhões de dólares de reservas da Rússia congeladas pelos Estados-membros da área do euro (pelo menos 60% do total de reservas congeladas pelo Ocidente de cerca de 300 mil milhões de dólares) e utilizar esses fundos para reconstruir a Ucrânia e financiar os apoios militares do Ocidente e, em particular, dos EUA, sob vários programas, entre os quais o Ukraine democracy defenselend-lease act de 2022 (Lei de empréstimo e aluguer de equipamento de defesa militar à Ucrânia), com que a União Europeia está, na prática, obrigada a ajudar a Ucrânia a pagar aos EUA. A Ucrânia está insolvente e nunca seria capaz de, por si só, pagar esses empréstimos dos EUA.

Confiscar é mais problemático do que congelar

Nicolas Véron e Joshua Kirschenbaum, num artigo em co-autoria publicado a 16 de maio no blogue do think-tank europeu Bruegel, argumentam que, embora a ideia seduza, “é desnecessária e imprudente”. Afirmam que não se coloca a questão da imunidade soberana, que se me afigura um dos argumentos mais importantes, mas defendem que tal medida colocaria em risco a estabilidade financeira e o papel das reservas internacionais, reduziria a capacidade negocial futura do Ocidente e enfraqueceria o Estado de direito e a posição moral do Ocidente, argumentando que o confisco das reservas internacionais da Rússia seria interpretado internacionalmente como um ato hipócrita e um padrão de comportamento distinto do passado para circunstâncias similares, particularmente pelos países subdesenvolvidos e em vias de desenvolvimento.

Defendem ainda que, no caso dos EUA, o confisco de reservas internacionais da Rússia não teria base legal, enumerando as razões pelas quais consideram que os casos de “confisco” das reservas do Afeganistão e da Venezuela pelos EUA não constituem precedente legal válido.

Note-se que, em maio, a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, tinha afirmado que seria ilegal confiscar as reservas da Rússia que tinham sido congeladas pelos EUA (estimadas em cerca de 38 mil milhões de dólares).

O Japão também afirmou que seria ilegal confiscar os cerca de 58 mil milhões de dólares de reservas da Rússia, que congelou no âmbito das sanções económicas a esse país.

Parece provável que os EUA não venham a declarar a Rússia como um Estado patrocinador do terrorismo

Se não existe fundamento para os EUA declararem a Rússia como Estado que promove o terrorismo, porque é que o Parlamento Europeu aprova por muito larga maioria tal deliberação ainda que não vinculativa?

Rússia irá retaliar sobretudo contra a área do euro

O antigo presidente e atual vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitry Medvedev, já pré-anunciou no seu canal do Telegram qual seria a reação da Rússia a essa eventual sanção económica europeia: confiscar cerca de 300 mil milhões de dólares de ativos detidos por empresas ocidentais e por residentes do Ocidente na Rússia. Um montante que seria, afirmou, “o suficiente para compensar o que eles roubaram da Rússia. […] Uma coincidência feliz”.

A União Europeia está por sua conta e risco

Em suma, esta iniciativa perspetiva-se como outra daquelas sanções económicas mal pensadas, que parece visar destruir mais pontes entre a União Europeia e a Rússia, como se daqui para a frente fosse possível viver de costas viradas para a Rússia, o que, mesmo durante a cortina de ferro com a União Soviética, não ocorreu, porque na altura o Ocidente continuou a ter relações comerciais e outras com a União Soviética.

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2022-11-28T08:00:00.0000000Z

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