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“O significado dos protestos tem mais que ver com a saúde mental pública”

A investigadora do King’s College acredita que será difícil uma reversão total da política “covid zero”

João Ruela Ribeiro

Covid-19

o que por vezes implica a proibição de circulação de milhões de pessoas de uma dada região durante meses a fio. Xangai, por exemplo, uma cidade de 25 milhões de habitantes, foi sujeita a um confinamento geral durante dois meses este ano.

A política promovida pelo regime de Xi Jinping foi inicialmente bem acolhida pela sociedade chinesa, sobretudo porque foi considerada fundamental para que a China conseguisse manter um número muito baixo de mortes associadas à covid-19. No entanto, com a progressão do processo de vacinação e o levantamento de restrições em praticamente todo o planeta, são cada vez mais os chineses que não compreendem a manutenção da abordagem.

Apesar das políticas altamente restritivas para combater os surtos, a situação sanitária não parece estar sob o controlo que os dirigentes chineses desejariam. No sábado, foram registados quase 35 mil casos de infecção na China, o valor mais elevado desde a eclosão da pandemia no final de 2019.

Ao contrário da generalidade dos países europeus, dos EUA, Austrália e Nova Zelândia, a China tem utilizado vacinas do vírus inactivado, de fabrico nacional, e não as que usam o mRNA, consideradas mais eficazes. As autoridades chinesas têm mantido oposição a recorrer a vacinas desenvolvidas em laboratórios estrangeiros. Embora a taxa de vacinação abranja 90% da população, cerca de um terço dos chineses com mais de 60 anos ainda não receberam a terceira dose, de acordo com o Financial Times.

A mutação dos protestos em contestação ao regime é um acontecimento extremamente raro, sobretudo desde que Xi subiu ao poder, em 2013. Desde então, o líder chinês consolidou o seu controlo sobre o Partido Comunista e sobre o aparelho de Estado, ao mesmo tempo que reforçou a repressão de qualquer crítica ao regime. Várias organizações de defesa de direitos humanos abandonaram o país e os poucos activistas políticos são vigiados de perto, quando não são simplesmente detidos.

“Isto vai colocar uma forte pressão sobre o partido para responder”, disse à Reuters o professor assistente de Ciência Política da Universidade de Yale (EUA) Dan Mattingly. “Há uma boa possibilidade de que essa resposta seja a repressão, e que eles prendam e condenem alguns dos manifestantes”, acrescentou.

O desafio ao regime assume um carácter ainda mais extraordinário por surgir pouco mais de um mês depois de Xi ter sido reeleito para mais um mandato como líder do partido, num congresso partidário visto como a sua confirmação como o homem mais poderoso na China desde Mao Tsé-Tung.

Ainvestigadora associada do Lau China Institute do King’s College de Londres Carla Mendes acredita que é ainda prematuro saber se as manifestações na China contra a estratégia “covid zero” têm um significado político ou se vão prolongar-se no tempo. Toda a operação de combate ao vírus montada na China foi assente numa “mobilização emocional da população”, diz a académica, e é preciso saber se isso ainda se verifica.

Os protestos na China são politicamente significativos?

Nesta altura, tudo é ainda muito recente, portanto é cedo para tirar conclusões significativas. Os significados políticos do que está subjacente aos protestos estão em vários níveis e, por isso, alguns académicos dizem que, de facto, há elementos sem precedentes, ou que não foram vistos durante muito tempo na China, que têm que ver com a alusão ao regime e à liderança de Xi Jinping. Mas na sua base, são protestos contra as medidas relativas à “covid zero” e tem havido algumas precipitações no sentido de analisar o contexto político destes protestos em relação à liderança política e ao regime. Há que esperar para ver.

O significado destes protestos, na minha óptica, tem muito mais que ver com uma reflexão profunda sobre a política de saúde pública, por um lado, e, por outro, aquilo que é o descontentamento da população face às medidas adoptadas e que tem que ver com uma conversa muito maior sobre o estado da saúde mental pública e aquilo por que as pessoas têm passado por causa das restrições que lhes são impostas.

É possível que o regime se mostre disponível para rever as medidas à luz da contestação?

Essa é a grande questão e já era uma questão antes do congresso do Partido Comunista. Havia alguma esperança de que essa revisão acontecesse, mas depois demonstrou-se que não havia possibilidade de abertura. Há especialistas que dizem que é muito difícil que haja uma revisão, pelo menos total, da política de “covid zero” por parte do regime chinês. É preciso pensar-se nas consequências que isso traria para a China.

Esta política tem tido várias consequências a nível dos danos sociais, económicos, na vida concreta das pessoas, sobretudo esta bifurcação entre aquilo que o Governo acha que é a solução eficaz para sair da pandemia e aquilo que está a acontecer no dia-a-dia das pessoas. Há um grande cansaço e exaustão e, portanto, tem de haver uma saída para este dilema.

O Governo chinês subestimou a frustração da população ao prolongar a sua estratégia de “covid zero”?

Deve ter havido uma leitura política, com certeza. Tem havido sucessivas tentativas para que essa frustração não se venha a desenvolver de forma mais profunda, incluindo com a questão de unir a China numa guerra contra o vírus. É um sentimento nacionalista que tem as suas implicações e manifestações concretas, portanto resulta, de alguma forma. Segundo o Governo, a estratégia tem resultado porque a China tem, de facto, uma estratégia muito eficaz em termos de contenção de casos, mas agora lida com outros factores, que são a transmissibilidade de outras variantes, a resposta da vacinação. Qual é a solução para sair deste dilema? Não podendo arriscar que o vírus se propague desmesuradamente, por um lado, e, por outro, não deixar que a população entre num desequilíbrio em termos de qualidade de vida, perspectivas económicas, condições de trabalho.

No mundo inteiro, nem sempre as respostas à pandemia foram objecto de uma leitura política em relação ao sentimento da população. A frustração, a ansiedade, a depressão, por causa das restrições, mas também por causa do medo do vírus, são questões a que a China deu atenção desde o início e que teve medidas para controlar. Não acho que haja uma desatenção política sobre isto. Aparentemente, uma parte da população chegou a um ponto de alguma ruptura.

A população chinesa apercebeu-se de que o seu país está em contraciclo com o resto do mundo. Não terá sido um erro de cálculo a insistência da China em querer fazer um percurso próprio no combate ao vírus?

Naquilo que é a fadiga das pessoas quanto às restrições, todos estes elementos são tidos em conta, porque as pessoas são influenciadas por aquilo que vêem. Mas há uma outra parte neste excepcionalismo das medidas da China que tem tido uma grande adesão e tem sido motivo de orgulho nacional. A mobilização emocional da população em torno da causa é uma questão muito importante para o regime chinês. Para esta estratégia resultar, a população tem de aderir de forma emocional a estas medidas. Em muitos casos, tem sido assim, mas quando interfere com questões como falta de comida, da percepção de as medidas serem eficazes, às vezes aparece um momento em que se nota que talvez não se esteja a aderir tão bem a essa mobilização emocional.

A estratégia de “covid zero” é também uma forma de o partido conseguir aumentar o controlo sobre a população?

O tom do controlo social tem sido premente em vários aspectos. Tem-se vindo a falar muito de o estado de vigilância ser compatível com o estado de controlo da pandemia e, portanto, tudo ajudar a essa tentativa de controlo social. Mas a questão não pode ser analisada apenas por este elemento. Tem também que ver com a tentativa de se encontrar um meio de sair da pandemia adequado às circunstâncias chinesas, à escala e dimensão das diferentes regiões. Qual seria a alternativa a isso? O controlo social já existe. O controlo social através da pandemia é um meio como muitos outros na sociedade chinesa.

Destaque Estratégia “covid Zero” Na China

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2022-11-28T08:00:00.0000000Z

2022-11-28T08:00:00.0000000Z

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